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Portuguesa rebaixada: da cultura da lei à cultura do direito
No próximo dia 27/12 o STJD reanalizará a decisão que rebaixou a Portuguesa à série B (colocando o Fluminense na série A). Portuguesa e Flamengo realmente escalaram jogadores irregularmente na última rodada do campeonato. O juízes aplicaram a lei secamente (que manda perder os pontos), sem atinar para o direito e a justiça. De toda pertinência recordar o que escrevemos (eu e Valério Mazzuoli, no livro Direito supraconstitucional: RT, 2013) a respeito da transmutação da cultura da lei para a cultura do direito. Aplicar a lei secamente era tarefa dos juízes saídos da Revolução francesa (1789). Mais de dois séculos já se passaram. O direito já teve 3 evoluções a partir deste modelo legalista de Estado e de juiz (constitucionalista, internacionalista e universalista), mas eles ainda não morreram. O conservadorismo é da essência da magistratura e do estado. Tudo que lhe convém permanece inalterado (mesmo que haja alteração jurídica e filosófica). O rebaixamento da Portuguesa foi legal, mas não observou o direito. Bastaria a aplicação do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade (que tem fundamento constitucional – art. 5º, inc. LIV, e tudo seria diferente.
Segue o texto do nosso livro acima citado:
Em seu livro De la ley al derecho, () o professor Rodolfo Luis Vigo bem sintetizou a evolução da cultura da lei (Estado de Direito legal) para a cultura do direito (Estado de Direito constitucional), que teve início (simbolicamente) com os julgamentos de Nuremberg, () ocasião em que vários nazistas foram condenados por violação do “direito”, embora tenham cumprido rigorosamente a “lei vigente e válida” da época. Cumpriram a lei, mas não observaram o direito. Lei é lei, direito é direito: essa é a lição magistral que se pode inferir dos julgamentos de Nuremberg.
Aliás, nesses emblemáticos julgamentos pode ser vislumbrada também uma das primeiras rupturas em relação ao velho Estado de Direito legal, visto que nenhuma lei que espelha uma injustiça extrema (Radbruch) faz parte do direito. O que se lamenta é a esquizofrenia jurídica que ainda prepondera nos meios acadêmicos, em que muitos professores ainda ensinam o velho Estado de Direito legal (primeira onda, leis e códigos), alguns sem nenhuma consciência das evoluções, outros com consciência, mas mesmo assim ainda apegados ao provecto modelo legalista, que foi superado pelo Estado de Direito constitucional (segunda onda).
As transformações mais relevantes (que refletem a passagem do Estado de Direito legal ao Estado de Direito constitucional) são as que apontaremos em seguida (com base na obra citada De la ley al derecho, de Rodolfo Luis Vigo). Notará o leitor que não fizemos só uma tradução das suas ideias. Mais que isso, fomos traduzindo e acrescentando vários outros aspectos que reputamos relevantes (para o aclaramento do tema), sobretudo enfocando a nossa realidade.
Mas antes, uma observação: muitas de tais transformações poderiam ser fundidas (notará o leitor muita repetição), algumas são mero desdobramento de outras etc. Tudo isso é facilmente perceptível. De qualquer modo, fizemos a opção por desdobrar o máximo possível as mencionadas transformações (e até mesmo repeti-las) porque isso ajuda a enfatizar cada uma delas. Para as hipóteses de repetição vale o aforismo latino: repetitio est mater studiorum. Vamos ao rol das mutações citadas:
(a) Confusão entre a lei e o direito: do modelo positivista legalista, forjado cientificamente pela Escola Histórica alemã, por Savigny e pelo primeiro Ihering, que foi difundido pela Escola Exegética francesa e consolidado por Kelsen, extrai-se a identificação entre a lei (os códigos) e o direito. O intérprete deve descobrir sempre a vontade do legislador. A fonte do direito (por excelência) era a lei. Essa confusão foi desatada com o constitucionalismo, que enfoca o direito de forma muito mais ampla: ele é obra coletiva que começa com o constituinte e termina com o juiz (ou seja, com a jurisprudência) (Villey). Lamenta-se que o mundo acadêmico e a praxe forense, em geral, ainda continuem seguindo exclusivamente os parâmetros legalistas, claramente insuficientes, na atualidade;
As teses centrais do paradigma positivista legalista foram todas – total ou parcialmente – derrotadas. Não se compreende como os meios acadêmicos e a praxe forense ainda continuem sustentando:
(a.1) que o direito é criado apenas pelo Poder Legislativo: o direito, na verdade, é uma obra coletiva construída, nem sempre prudencialmente, desde o constituinte até o juiz (Villey);
(a.2) que o direito se confunde com a lei e está inteiramente descrito nos códigos: o direito é uma realidade muito mais complexa do que a lei, vai além da lei, ele se segue à lei. De outro lado, a era da codificação morreu (hoje, tendencialmente, existem mais leis esparsas que codificadas);
(a.3) que o direito pode ser conhecido pelos meios oficiais de sua publicação (bastaria ler o Diário Oficial para conhecer o direito): nada disso é verdade. Quem quer saber o direito deve ler a obra do constituinte, passar por todo o direito positivo do país e dos órgãos internacionais e ainda conhecer muito bem a jurisprudência nacional e internacional;
(a.4) que o saber jurídico é o técnico-científico (dogmático), que tem o objetivo de explicar e sistematizar o direito positivo: este modelo antigo de jurista (que conhecia as leis e os códigos) e de ensinar o direito está ultrapassado porque, além do saber jurídico, agora outros saberes (filosofia, psicologia, sociologia, economia etc.) são também relevantes para explicar e definir (a partir dos princípios e valores constitucionais e internacionais) o direito justo aplicável em cada caso concreto;
(a.5) que a aplicação do direito (ou seja, da lei) realiza-se por meio da subsunção e de um elementar silogismo dedutivo (premissa maior, premissa menor e conclusão): do método subsuntivo evoluímos para o ponderativo, do silogismo dedutivo clássico passamos para o macrossilogismo, que exige do juiz definir (a) as questões controvertidas, (b) a fixação da premissa menor (dos fatos alegados e provados), (c) o estabelecimento da premissa maior (qual é o direito justo aplicável ao caso concreto?) e (d) as imposições das consequências equitativas que melhor resolvem o caso;
(a.6) que a Constituição é um programa político, não um documento jurídico, dirigido ao legislador que contaria com liberdade para criar as regras jurídicas: a Constituição, na verdade, possui valor cogente e é superior a qualquer outra norma jurídica, que encontra nela seu fundamento. O legislador, de outro lado, também está vinculado à Constituição e ao direito internacional. Conclusão: nem tudo que ele produz é válido, nem tudo que é vigente é válido;
(a.7) que qualquer outra eventual fonte do direito (jurisprudência, princípios etc.) operaria de modo subordinado à lei: a lei foi destronada, toda interpretação hoje parte do texto constitucional (ou seja, do higher law). Já não é a vontade do legislador ordinário que vale, mas sim a construção do direito feita do constituinte até o juiz. Agora o senhor do direito é o juiz, daí a importância da jurisprudência como fonte imediata do direito.
(b) Do legalismo ao principialismo: do legalismo (onde todo o direito fundava-se na lei soberana, como pregavam Savigny, Kelsen, Hart etc.) passa-se para o principialismo (onde a justiça é fundada nos princípios e nos valores constitucionais, consoante Alexy, Dworkin, Ferrajoli, Zagrebelsky, Nino etc.): nisto reside a constitucionalização do direito (ou o chamado neoconstitucionalismo), que consagra uma forte operatividade, antes nunca vista, dos direitos humanos.
(c) Visão legalista versus visão principialista: esta é a aporia que separa Kelsen de Esser, afirmando o primeiro que a teoria pura do direito não podia admitir a entrada dos princípios, porque, por meio deles, entrariam no direito a moral e os valores, retirando-lhe o caráter científico. Antagonistas também foram as doutrinas, no mundo anglo-saxônico, de Hart e de Dworkin (sustentando o último, em contraposição ao primeiro, o system of principles). Com base nos princípios, pode uma lei ser declarada inconstitucional, e isso deve ser feito sempre que ela consagrar uma iniquidade ou uma irrazoabilidade manifesta; quando a lei não for declarada inconstitucional, ao menos deve deixar de ter incidência no caso concreto, quando deva preponderar um princípio (esta é uma situação em que a regra legal conflita com um princípio constitucional).
(d) Da irrelevância da interpretação do juiz à transcendental tarefa de buscar o direito: no modelo legalista original era irrelevante (aliás, no princípio era vedada) a vontade interpretativa do juiz, que foi concebido (no modelo do Estado liberal burguês) como “um ser inanimado” (Montesquieu). O papel do juiz era reduzir silogisticamente o caso à lei, que já era tida como direito dado, sem nenhuma incerteza. Robespierre chegou a sugerir que a palavra jurisprudência fosse eliminada do dicionário. Hoje se sabe que o direito começa com o constituinte e termina com o juiz, que deve procurar com racionalidade a solução justa para o caso concreto.
(e) Da interpretação conforme a lei à interpretação conforme a Constituição: o juiz legalista parte da lei e chega com a lei para a solução do caso concreto. No sistema constitucionalista o ponto de partida para a descoberta do direito não é a lei, mas sim a Constituição. A lei pode ser o ponto de chegada, mas isso só ocorre quando ela é absolutamente compatível com as demais normas jurídicas superiores.
(f) Da jurisprudência como regra individual à jurisprudência como fonte imediata do direito: Kelsen chegou a admitir que a jurisprudência seria criativa, mas a norma criada pelo juiz valeria só para o caso concreto. Kaufmann, modernamente, descreveu a chave hermenêutica da seguinte maneira: “aplicar o direito é descobri-lo”. A resposta jurídica para o caso concreto vai (com frequência) muito além da lei e passa, necessariamente, pela jurisprudência.
(g) Dos clássicos métodos interpretativos à justificação racional da decisão: o juiz, no sistema positivista legalista, para descobrir a vontade do legislador, devia (conforme ensinava Savigny) seguir os métodos (1) gramatical, (2) lógico, (3) histórico e (3) sistemático. A estes métodos clássicos foi agregado um outro: o teleológico (que significou uma sensível mudança de paradigma, porque já agora se fala em finalidade da lei, não do legislador). O juiz, na atualidade, deve ter a preocupação central de descobrir o direito vigente e justificar racionalmente (argumentativamente) a solução justa para o caso.
(h) Da lógica formal ao saber jurídico prático: a decisão do juiz, no sistema clássico, seguia a lógica formal silogística da premissa maior (norma), premissa menor (fato) e conclusão (consequências legais aplicáveis). Desde Savigny a Kelsen houve sempre recusa total ao saber prático, que reside no real conhecimento do caso, dos valores nele implicados, assim como na descoberta do direito mais justo para a sua solução.
(i) Do método subsuntivo ao método ponderativo: a preocupação antiga era só a de enquadrar o caso no texto da lei (método subsuntivo). Hoje o juiz precisa, antes de tudo, descobrir o direito justo aplicável para depois demonstrá-lo racionalmente na sua decisão; com frequência deve ponderar o valor de cada princípio, para eleger o mais razoável na situação concreta.
(j) Do regralismo ao principialismo: o modelo positivista legalista estava fundado inteiramente nas regras legais. O neoconstitucionalismo nos conduz a descobrir a essência dos princípios e dos valores implicados em cada um deles. Do direito das regras (Savigny, Kelsen, Hart etc.) evolui-se para o direito dos princípios (Esser, Dworkin, Alexy, Zagrebelsky etc.). Bobbio disse: “Os princípios gerais do direito transformaram-se em um capítulo central da teoria geral do direito”. Prieto Sanchís reconheceu “a nova idade de ouro dos princípios”; os princípios não só são diferentes, como controlam a lei.
(k) Radical transformação das fontes do direito: a lei, no sistema antigo, era a única fonte do direito. Os costumes, a jurisprudência e os princípios eram apêndices supletivos da lei. Para conhecer o direito bastava conhecer a lei. Este modelo está superado. As fontes do direito são muito mais complexas: vão do direito produzido pelo Estado ao direito produzido internacionalmente, passando pelo direito criado abaixo do Estado (acordos coletivos trabalhistas, v.g.), assim como por outros órgãos além do Poder Legislativo (direito criado pelo Poder Executivo). A todas essas fontes ainda devemos agregar a jurisprudência, que é o direito produzido pelos juízes; conhecer o direito significa conhecer todas estas fontes, não só a lei.
(l) Da ciência jurídica positivista aos saberes jurídicos do direito: a ciência jurídica, antigamente, tinha como missão central descobrir o sentido assim como sistematizar o direito positivo. O saber dos juristas era dado pelos cientistas do direito, que demarcavam as aulas nas faculdades de direito. A partir da segunda metade do século XX, o paradigma passou a ser outro: o direito tornou-se complexo, possuindo várias fontes normativas e, além disso, ainda é integrado por princípios e valores que devem ser descobertos pelo juiz em cada caso concreto; o direito positivado na lei muitas vezes deve ser ocultado (Dworkin), a lei injusta deve ser desconsiderada (Finnis), a injustiça extrema não é direito (Alexy e Radbruch); a scientia juris não se confunde com a prudentia” (diz Zagrebelsky).
(m) Do sistematicismo jurídico ao modelo principiológico (tópico) flexível: a sistematização do direito é a tarefa que foi atribuída à ciência jurídica (consoante Savigny); a pirâmide jurídica de Kelsen daria o acabamento final a este modelo caracterizado pela unidade, hierarquia, coerência, plenitude e economia. O jurista na atualidade deve se contentar com algo muito mais modesto (flexível), ou seja, deve se voltar para a solução do caso concreto a partir de regras e princípios gerais, visto que o direito é extremamente dinâmico. O saber jurídico clássico (legalista) difundia a ideia de um saber pleno, objetivo, isento de valorações e distinto da moral: desde Savigny a Kelsen sempre foi proclamada esta ideia. A partir de 1970, com Reidel, descobre-se a “reabililitação do saber prático”, fundado nos valores e nos princípios. As decisões podem ser racionalmente justificadas com base em princípios e em valores. Cabe ao juiz-filósofo Hércules (de Dworkin) encontrar sempre a resposta correta para cada caso, enfocando-o em sua realidade prática.
(n) Do pensamento sistemático ao pensamento problemático: para Savigny e Kelsen, a ciência jurídica só podia ser construída a partir da sistematização do direito. O sistema jurídico seria dotado das seguintes características: (1) unidade (o Estado cria o sistema jurídico); (2) hierarquia (de acordo com a pirâmide jurídica de Kelsen, a lei é válida quando encontra fundamento em outra norma superior); (3) completude (o sistema não possui lacunas); (4) coerência (o legislador racional cria regras sem contradições e sem privilégios); e (5) economia (o sistema evita redundâncias normativas). Tudo isso está completamente ultrapassado. Viehweg (na década de 1950) viria a sustentar que do pensamento sistemático devemos evoluir para o pensamento problemático (para descobrir o direito justo em cada caso concreto); o juiz tem o dever de encontrar a justiça por meio do direito.
(o) Da lei à Constituição: o sistema positivista legalista, fundado na lei, via a Constituição apenas como um programa político dirigido ao legislador, que tinha total liberdade para criar o direito. No sistema constitucionalista, a lei é destronada e a preeminência é assumida pela Constituição, que é a Grundnorm (a norma fundamental e o parâmetro de validade de todas as demais normas); o direito confundia-se com a lei e era produto do legislador e este era o “senhor do direito”.
(p) Da soberania do Estado à “soberania da Constituição”: no antigo modelo juspositivista cabia ao Estado soberano criar a norma (o direito). Uma das mais eloquentes expressões da sua soberania era justamente a centralização da produção normativa (produção do direito). Soberana, agora, é a Constituição (à qual estão subordinadas todas as demais leis) e não mais o Estado, que doravante passa a também ter de respeitá-la.
(q) Da soberania nacional ao direito transnacional: é a soberania nacional de cada Estado que o possibilita criar o direito. A ordem jurídica é emanação da soberania estatal (nesse sentido: Bodin, Maquiavel, Hobbes, Ihering, Bentham e Kelsen). A soberania do Estado começou a perder valor absoluto com a criação do direito comunitário e hoje se encontra totalmente questionada diante do direito regional (tratados de direitos humanos etc.), do direito internacional (Tratado de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, v.g.), do império das Cortes de Justiça internacionais etc. A primeira noção de soberania estava centrada no Estado criador do direito: no seu espaço territorial, todos (em princípio) sujeitavam-se a este direito. Hoje os Estados (não tanto soberanos) convivem com regras e princípios comunitários (União Europeia, por exemplo; Mercosul etc.) ou regionais (sistemas de proteção de direitos humanos) ou globais (Tribunal Penal Internacional, por exemplo). As decisões da Justiça brasileira, em matéria de direitos humanos, já podem não constituir a última palavra (que está reservada, no nosso âmbito, à Corte Interamericana de Direitos Humanos); é impressionante, de qualquer maneira, o quanto nosso mundo acadêmico (de um modo geral) ainda está divorciado dessa realidade.
(r) Da segurança jurídica à justiça da equidade: segurança jurídica (previsibilidade jurídica) foi uma das principais bandeiras da burguesia liberal do século XIX. Nas sociedades democráticas contemporâneas o direito vigente conta com uma inegável dimensão axiológica, dada, sobretudo, pelos princípios e valores constitucionais e internacionais; o dura lex, sed lex está ultrapassado; uma lei que prevê uma injustiça extrema não faz parte do direito; toda lei deve ser interpretada equitativamente, tendo em vista o valor justiça; diante dos valores da justiça e da equidade é certo que o legislador não é o único “senhor do direito”; é o juiz que, agora, é o “senhor da justiça e do direito”.
(s) Dos fatos puros à transcendência dos outros saberes fáticos: no modelo silogístico formal antigo o fato devia ser subsumido no texto legal e não era objeto de muito questionamento. Na atualidade, a cultura jurídica deve ser mais receptiva aos saberes não jurídicos (técnicos), porque é por meio deles que se conhece melhor o plano fático; está decretada a abertura da cultura jurídica para a não jurídica (psiquiatria, genética, engenharia, bioética etc.).
(t) Da visão mágica da linguagem ao reconhecimento dos seus graves problemas: admitia-se no modelo dogmático clássico que a linguagem era a via idônea e fácil não só para se transmitir o direito dado pelo legislador, mas também para que o direito fosse bem compreendido e aplicado com segurança. Hoje se sabe que a linguagem revela complexos problemas semânticos, sintáticos e pragmáticos.
(u) Do juiz funcionário burocrático à judicialização plena da vida moderna: o século XIX foi o século do legislador porque se acreditava na sua infalibilidade, no seu senso de justiça etc. O juiz não tinha quase nada que fazer, era, assim, um ser inanimado (Montesquieu). Rousseau dizia que o cargo de juiz só servia para o sujeito conquistar méritos e probidade para o exercício de outras funções, não burocráticas. As sociedades modernas são extremamente complexas e todos os seus conflitos (ambientais, ecológicos, energéticos, bioéticos, concorrenciais, políticos etc.) são submetidos ao juiz, cuja atividade gera atrito em todo momento com todos os demais poderes republicanos; a morte do juiz cético, oculto e legalista já foi anunciada há muito tempo (só não dá ainda para se marcar a sua missa de sétimo dia, porque ele ainda não foi sepultado).
(v) Do juiz neutro ao juiz axiológico: na atualidade, são incontáveis os conflitos que a sociedade moderna (de riscos, como diz Ulrich Beck) leva ao juiz. Os mais complexos conflitos das pessoas e das sociedades pós-industriais estão sendo diariamente judicializados. A atividade do juiz tornou-se extremamente complexa, cabendo-lhe conhecer em profundidade o direito que se segue à lei. Mas se na era do legalismo o juiz era a boca neutra da lei (la bouche de la loi), hoje deve ser a boca do direito prudente (ponderado, proporcional): deve ser um juris prudente, eis que deve buscar a solução mais justa para o caso concreto, por meio da aplicação dos princípios e valores oferecidos pelo sistema.
(x) Do juiz legalista ao juiz “fiscal” da constitucionalidade das leis: no sistema constitucionalista o juiz (como senhor do direito) funciona não só como legislador negativo, senão também como agente derrogativo, interpretativo etc. A Constituição passa a ser o higher law (o direito mais alto) que comanda toda produção jurídica doméstica. Da soberania da lei passa-se para a soberania da Constituição. O juiz (como senhor do direito), por força do controle de constitucionalidade, pode desde então reconhecer a invalidade de qualquer lei (desde que incompatível com as normas jurídicas superiores); se o século XIX foi a era do Legislativo e o XX a do Executivo, o XXI constitui a era do Judiciário.
(z.1) Do silogismo formal ao macrossilogismo atual: da clássica premissa maior (norma), premissa menor (fato) e conclusão (consequência jurídica) chega-se, na atualidade, a um macrossilogismo, que deve ser seguido em todas as sentenças e é composto de quatro etapas: (a) demarcação do problema a ser solucionado, da lide, das questões controvertidas; (b) premissa menor (fatos alegados pelas partes e fatos validamente provados); (c) premissa maior (descoberta do direito aplicável); e (d) consequências jurídicas emanadas do direito justo e equitativo.
(z.2) Da validade jurídica formalista passa-se para a validade ética: a lei vigente é válida, de acordo com o paradigma legalista positivista defendido por Kelsen, desde que elaborada pelo poder competente, consoante o procedimento previsto. Esta é uma validade puramente formal (jurídica), que depende só da existência de um poder fundante. Esta lógica mudou: a lei que viola princípios éticos básicos, gerando injustiça extrema, não pode nunca ser válida (dizia Radbruch); nem toda lei vigente é válida.
(z.3) Do ensino codificado à nova teoria das fontes do direito: as faculdades ainda estampam grades curriculares baseadas nos códigos (civil, penal etc.). Ensina-se o direito (de um modo geral) de acordo com a visão legalista positivista, que conduz o estudante a uma especialização numa determinada área. Esta cultura tradicional conspira contra a formação completa do jurista. O jurisprudente precisa ser prudente e, antes de tudo, conhecer o juris (o direito), que é extremamente mutável e flexível. Muda a cada dia: ou muda a lei ou muda a jurisprudência. O jurista precisa conhecer a lei e o direito que lhe segue, que vem retratado na jurisprudência (interna e internacional); a nova teoria das fontes do direito requer estudar o produto legislativo do constituinte, a legislação produzida pelo Estado e pelos órgãos internacionais, assim como a jurisprudência nacional e internacional. Todas essas fontes dialogam. Aliás, é desse diálogo que emerge a norma jurídica (o direito) aplicável em cada caso concreto.
(z.4) O direito como fim e o direito como meio: o direito não pode ser considerado um fim em si mesmo. Nenhum profissional do direito pode deixar de aspirar à realização da justiça: o direito existe para se alcançar a justiça em cada caso concreto, partindo-se de uma visão antropocêntrica (o direito, o Estado e a justiça existem para o ser humano e para a vida, não o contrário).
(z.5) Do Estado de direito constitucional ao Estado de direito internacional: do Estado de direito legalista evoluímos para o Estado de direito constitucional, que é regido pela Constituição de cada Estado, que cria e aplica o seu direito. Esse mesmo direito constitucional acabou sendo complementado pelo direito internacional (sob a forma regional ou comunitária ou global). Não são dois modelos excludentes – ao contrário, são complementares um do outro.
(z.6) Do Estado de direito internacional para o Estado de direito universal: a última evolução pela qual passará o direito contemporâneo (e agora já estamos a falar de pós-modernidade jurídica) é a transição do internacionalismo para a fase chamada de universalismo, momento em que nascem as normas supraconstitucionais, que são o objeto principal deste nosso estudo. A nossa referência à última evolução “pela qual passará o direito contemporâneo” tem o intuito de não deixar o leitor pensar que a fase do universalismo já é uma concretude. Neste momento estamos a estudar o constitucionalismo e, no item seguinte, estudaremos o internacionalismo. Depois de tudo isso é que veremos o que é o universalismo, que é ainda uma fase incipiente nas relações internacionais contemporâneas (imagine-se a concepção de Estado, de Direito e de Justiça que ainda têm os órgãos do Poder Judiciário, especialmente no Brasil!). Como veremos mais à frente, o Brasil, notadamente depois do julgamento (em 3 de dezembro de 2008) do RE 466.343-1-SP, parece ter finalmente alcançado a terceira onda do Estado, do Direito e da Justiça, que é o internacionalismo, aceitando a existência de normas de índole e nível constitucionais autorizadas pela Constituição (v. art. 5.º, § 3.º, da CF). Mesmo nos votos que aceitam o nosso posicionamento (segundo o qual todos os tratados de direitos humanos, independentemente de autorização constitucional, já têm status materialmente constitucional), como foi o voto do Min. Celso de Mello, ainda assim não se admite uma hierarquia supraconstitucional das normas internacionais de direitos humanos. Conquanto não sejam todas as normas internacionais de direitos humanos que comportam nível supraconstitucional, o certo que é o Poder Judiciário ainda tem dificuldade para aceitar o nível (ao menos) constitucional desses tratados. Daí se entender que o universalismo (a fase que resolverá tudo isso) ainda não é uma fase concreta no Brasil, o que não significa que um dia não possamos chegar a ela, igualando-nos aos países mais desenvolvidos do mundo no que tange a essa temática. Por ser essa análise (das normas supraconstitucionais) o tema principal deste livro, reservamos o assunto para os Capítulos seguintes
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