Curiosidades
‘O caos do mundo de hoje penetrou nos personagens’, diz escritor Mick Herron
Autor de livros de espionagem adaptados na série ‘slow horses’ tem duas primeiras obras lançadas Brasil: ‘Há algo bem britânico em se prestar atenção ao perdedor'
Há três anos a revista New Yorker perguntou se Mick Herron era mesmo o melhor escritor de espionagem de sua geração, como argumentam críticos. A conclusão foi a de que o inglês de 62 anos era no mínimo o mais divertido. O lançamento no Brasil de “Slow Horses” e “Leões adormecidos”, os dois primeiros volumes da série “Slough House”, é uma ótima notícia para fãs da literatura de mistério.
Despedida.
'Avatar 3'.
No embalo do sucesso da série “Slow Horses”, inspirada no universo criado por Herron, em sua quinta temporada na Apple TV+, a editora Intrínseca manteve alguns títulos em inglês. “Slough House” é o pulgueiro onde são confinados agentes do serviço secreto inglês caídos em desgraça. “Slow Horses”, ou “pangarés”, é gíria para lentos e ultrapassados. Quem comanda a legião de incompetentes é o repulsivo Jackson Lamb, vivido na série por Gary Oldman.
“Slough House” vendeu quatro milhões de exemplares no mundo. Outra de suas investidas literárias, “Mistério em Cemetery Road”, também foi adaptada pela AppleTV+, com Ruth Wilson e Emma Thompson.
Herron jamais trabalhou, como seus precursores Graham Greene, Ian “007” Fleming e John le Carré, para o Serviço Secreto inglês. Casado com uma agente literária, era revisor de textos. Ele conversou por videochamada de seu escritório, onde acabara de terminar o nono tomo de “Slough House”, “Cidade dos palhaços” (em tradução livre), nas listas das melhores obras do gênero em 2025. É o único aposento, revela, em que não entram os gatos Tommy e Scout: seus xodós há quase cinco anos lhe privam da concentração na hora da labuta.
Na introdução da edição brasileira, o senhor puxa as orelhas dos críticos que lhe apresentam como “o novo John le Carré (1931-2020)”. Mas o homenageia, de forma cifrada, nesses dois livros.
A comparação acontece com regularidade preguiçosa. Sei que as pessoas conhecem a obra dele e o paralelo é, claro, lisonjeiro. Mas não escrevemos sobre as mesmas coisas.
Pode-se argumentar que o senhor e ele são dois dos principais ficcionistas de espionagem de suas gerações, não?
Jogo no time de Robert Littell (autor americano de romances como “A companhia”, sobre a CIA, que virou minissérie). Ele tem algo que me é muito caro: um senso do absurdo destilado pelo humor. Le Carré não é alheio à ironia, mas a usa de modo específico. Ele não leva o universo da espionagem para o nonsense, como Littell e eu.
Seus livros se passam nos dias de hoje, talvez mais absurdos do que a realidade da Guerra Fria, contexto para a obra de Le Carré...
O caos do mundo de hoje foi penetrando nos personagens. De certa forma, foi uma bênção, pois intuía que meu talento estava na criação de enredos aparentemente implausíveis. Mas seria incapaz de escrever personagens tão ridículos como certos líderes que nos governaram. Monstros. Caricaturas de monstros. O absurdo, literalmente, nos governou. E minha literatura virou um atestado deste nosso momento.
Críticos enxergaram em seus espiões sem talento um comentário sobre a decadência do Reino Unido.
Eles se tornaram uma reflexão sobre o divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia. Escrevi esses dois primeiros volumes traduzidos no Brasil em 2010 e 2013, e o referendo sobre o Brexit foi em 2016. Um personagem defende a inevitabilidade de a Grã-Bretanha, insular, voltar-se de novo para dentro, algo que já estava no inconsciente coletivo, embora no meu círculo acreditássemos até a hora do voto ser uma maluquice. Deveríamos ter prestado atenção no que nos cercava. Quinze anos depois, revejo aquele personagem e me entristeço ao entender que ele estava certo. Os extremos se moveram para o centro.
Sua formação é católica. Foi uma influência na criação do purgatório em que seus espiões vivem na “Slough House”?
Sim e não. Eles estão confinados em trabalhar num purgatório ou limbo. Mas de lá jamais sairão. Para eles, redenção, tal qual definida pelo catolicismo, não é opção.
E para o limbo geopolítico, há saída? Como vê hoje o Brexit?
Foi um retumbante fracasso. Nós, britânicos, perdemos algo na casa dos 100 bilhões de libras. Foi um ato de insanidade coletiva. Vivemos nosso purgatório. Gostaria que pudéssemos retornar para a Europa, mas isso não acontecerá na minha geração.
Do que gosta mais em “Slow Horses”, a série audiovisual?
A equipe criativa da série é formada por alguns dos primeiros fãs dos livros. Sou produtor-executivo, consultor, já fiz aparições, bato ponto na sala dos roteiristas. Percebi que eles queriam fazer a representação exata do que escrevi. Mas há situações em que o enredo muda, o meio é outro. Pois são essas mudanças que me agradam mais, me surpreendem, até porque todo o demais eu já sabia de cor. Também percebo que meus livros têm se distanciado do que se vê na telinha.
De que modo?
Ler é uma experiência diferente de se ver uma série. Há um trabalho diferente daquele de se seguir, da poltrona, a tela. Agora levo isso ainda mais em conta. Mas ainda me impressiono em como os personagens, e os atores que os interpretam, são tais quais os que criei, inclusive em seus temperamentos, jeito de ser. E aí precisamos falar de Gary Oldman.
Gary Oldman.
Precisamos falar de Sir Gary Oldman…
É verdade, o Jackson Lamb, quem diria, agora é um Sir (risos). Gary é de outro mundo. Ele criou movimentos, trejeitos, que nem tinha pensado para o personagem. Adoro ver o que faz. Mas jamais carreguei o que ele criou para os livros. A não ser uma vez: ele me mandou uma foto que tirou das meias do sogro. Com a legenda: “Mick, quem isso te lembra?” O sogro costura os furos das meias velhas das quais não quer se desapegar com fita adesiva. Aí foi maior do que eu. Levei as meias para os livros (risos).
Nas redes sociais, fracasso se tornou atestado de incompetência. Um dos segredos para o sucesso dos livros foi apostar no avesso da americanização do nosso cotidiano?
Há algo bem britânico em se prestar atenção no perdedor, no azarão, no marginalizado, distante das pessoas de propaganda de margarina. Todos temos dias difíceis. Meus personagens os têm de sobra. Os livros podem ter funcionado como um escape à ditadura do sorriso, mas preciso reconhecer, até para ser coerente, que demorou para caírem no gosto das pessoas. Nossa conversa me fez pensar que há outra característica da minha literatura nestes tempos velozes.
Qual?
Há muita gente escrevendo com a atenção voltada para uma sequência frenética de ação. Eu gosto mesmo é de me dedicar aos personagens, de pensar neles, no que estão pensando e sentindo.
Quais foram os livros da sua vida?
Os que li no fim da adolescência e começo da vida adulta. Que me formaram. Na faculdade de Língua Inglesa, os clássicos. Li toda Jane Austen e Charles Dickens. Antes, no colégio, todos os thrillers, Agatha Christie, John Steinbeck, Muriel Spark, e, claro, F. Scott Fitzgerald, que tratou do fracasso como poucos.
‘Slow Horses’
Tradução: Camila von Holdefer. Editora: Intrínseca. Páginas: 416. Preço: R$ 79,90.
‘Leões adormecidos’
Tradução: Rita Paschoalin. Editora: Intrínseca. Páginas: 416. Preço: R$ 79,90.
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