
Benfeitorias: a contagem miúda do que ficou — e do que volta a ser terra

Tudo começa no silêncio: um técnico ajeita o boné, outro abre a prancheta na carroceria da camionete, a trena se estica como peixe de metal, o GPS marca a posição. Não há discursos, apenas o gesto miúdo de transformar vidas em números. É assim que o processo de demarcação da Terra Indígena Xukuru-Kariri, em Palmeira dos Índios, avança para sua etapa decisiva: a avaliação das benfeitorias.
No vocabulário oficial, “benfeitorias” soa frio, quase mecânico. Mas no chão da roça, é lembrança viva: o curral erguido pelo avô, a cisterna que salvou a família de uma seca, o pomar de laranjeiras que garantiu sustento. Tudo isso vai para a conta. E é justo que vá. Porque, embora a terra em si seja direito originário dos Xukuru-Kariri, as melhorias feitas por quem ocupou de boa-fé não podem ser apagadas como se nunca tivessem existido.
De repente, a rotina de Palmeira dos Índios se interrompe: uma camionete branca estaciona à sombra de um umbuzeiro. Descem dela homens e mulheres de voz calma, trena e câmera em punho: “Somos da FUNAI, Grupo Técnico”. Eles pedem licença, anotam medidas, registram telhas, fotografam pomares. O gesto é simples, mas carrega décadas de espera, disputas em tribunais, promessas políticas nunca cumpridas.
A portaria que nomeou o grupo fixou prazos: 41 dias de campo, 60 dias para o relatório. Mas há mais que burocracia: uma ordem judicial respalda cada passo, garantindo que o processo não seja interrompido outra vez. A legislação já conhece esse caminho: a demarcação se faz em fases, e a indenização é a ponte que liga o direito constitucional indígena à reparação justa de quem construiu com boa-fé.
E aqui está um ponto que merece clareza: não se trata de premiar espertalhões ou pagar pela terra nua — a lei veda isso. Trata-se de reconhecer quem ergueu sua vida sem saber que pisava em território indígena, muitas vezes numa época em que o próprio Estado fazia vista grossa. Essas pessoas merecem indenização justa, porque suas casas, suas plantações e seus currais são frutos de trabalho e tempo de vida. A indenização não apaga a perda, mas confere dignidade à saída.
Nos dias de campo, a cena é menos tensa do que se imagina. Quando o técnico pede para ver a horta, a senhora pega o chapéu e acompanha. Quando ele pergunta quantas linhas de telha cobrem o galpão, o rapaz sobe na escada e conta em voz alta. É tudo registrado em formulários, com a pergunta que mais pesa: “Quando foi construída?”. Porque o tempo, mais do que a madeira ou o tijolo, separa a boa-fé da apropriação oportunista.
Para os não-indígenas, essa etapa significa a chance de uma compensação legítima. Quem aceitar negociar terá prioridade, como diz a portaria. É uma forma prática de acelerar acordos, reduzir conflitos e evitar que a saída seja acompanhada de ressentimento. Para os indígenas, significa ver cada metro de sua terra medido não como um favor, mas como um direito que volta.
No fim da tarde, os técnicos guardam a trena, a senhora serve café, o rapaz sorri com ar de dever cumprido. Assinam papéis, registram coordenadas, tiram uma foto de referência. Nada de épico, apenas pequenos acordos de realidade.
Em alguns meses virão relatórios, indenizações, notificações e prazos. Cada etapa terá seus desconfortos, mas também uma honestidade rara: reconhecer o que foi feito, pagar o que é justo, devolver o que é devido. A crônica poderia dizer que se trata de um balanço emocional da terra: fechar contas com o passado para permitir um futuro de sossego.
E é isso que se espera: que ninguém saia invisível, que nenhum ocupante de boa-fé seja tratado como intruso sem história, e que nenhum indígena precise pedir licença para existir em seu próprio território. Que a terra volte a ser casa dos Xukuru-Kariri, e que os que partirem possam olhar para trás e dizer: “fizemos o que se podia, com régua, lápis, justiça e respeito”.