
Zumbis, cream cracker e Sartre
Crônica

Tenho um talento engraçado: lembro dos meus sonhos. Enquanto tem gente que acorda só com a fronha estampada na cara, eu saio da cama com roteiros prontos — daqueles que poderiam virar série na Netflix, ser cancelada na primeira temporada e depois virar cult no TikTok, com vídeos do tipo “essa cena vive na minha cabeça sem pagar aluguel”.
O último? Uma mistura de The Walking Dead com "Zumbilândia" (2019), com vibe de reality show de convivência da MTV que deu muito errado. Era o apocalipse zumbi. Mas não um apocalipse qualquer. No meu sonho, os zumbis seguiam uma rotina britânica. Todo dia, às seis da manhã em ponto, eles eram liberados para aterrorizar. Isso mesmo: zumbi com horário. Nada de caos generalizado. Era tudo bem cronometrado, tipo metrô de Tóquio ou chá da tarde inglês. Às 5h59, silêncio fúnebre; às 6h01, gritos e correria. Mas sempre dentro do protocolo.
A dinâmica lembrava as portas do labirinto de “Maze Runner”: abrem, acontece o terror, fecham. E no dia seguinte, tudo de novo. Mas o problema não eram os zumbis. O problema era o pessoal do abrigo.
Porque, veja bem, sobreviver a monstros carniceiros é fácil perto de ter que dividir bolacha cream cracker vencida com alguém que mastiga de boca aberta. Ou de ter que decidir, em grupo, quem vai sair para buscar comida — sendo que ninguém quer ir e todo mundo quer mandar. O caos real não estava lá fora — estava no ego inflado do pessoal que ainda respirava. Imagine seu amigo, do nada, virando um protótipo do presidente Snow. Alguém com três seguidores no Instagram de repente achava que era líder mundial. Só faltava discurso motivacional no refeitório no estilo “Café com Deus Pai”.
Foi aí que me veio a frase de Sartre: “O inferno são os outros”. No meio do apocalipse, ela nunca fez tanto sentido. E, para complicar, lembrei também de outra dele: “O homem está condenado a ser livre”. Pois é: naquele abrigo, a liberdade de escolher quem ia buscar comida não vinha sem peso — porque as escolhas tinham consequências imediatas, e fugir disso era impossível.
E então vem o plot twist psicológico: percebi que o sonho era menos sobre zumbis e mais sobre... trabalho em grupo. Isso mesmo. Aquele mesmo do semestre passado, em que uma pessoa fazia tudo, duas sumiam e uma só mandava figurinha no grupo do WhatsApp. O inconsciente, às vezes, é sutil como uma voadora em câmera lenta ao som de “Hello”, do Lionel Richie.
Tenho dormido mais cedo e os sonhos têm vindo mais longos, quase com trilha sonora do Volker Bertelmann e elenco selecionado pela Nina Gold. Dá pra sentir que meu cérebro está tentando me dar um toque: no apocalipse zumbi real, não basta saber atirar. Vai ser preciso mediar conflito, lidar com gente passivo-agressiva, abrir exceção para quem diz “não sou de grupo” e marcar sessão de terapia coletiva entre um ataque e outro.
Ou talvez tudo isso seja só o trauma dos últimos projetos coletivos da faculdade falando alto. Vai saber. Só sei que, no fim do mundo, minha maior arma não vai ser uma pá ou uma escopeta. Vai ser um bom “vamos conversar rapidinho?”.
Às vezes, nem isso resolve — mas a grande lição que fica é: tenha pelo menos um amigo confiável para formar uma dupla de última hora. E, se possível, assim como Bear Grylls, que saiba quais folhas devemos comer. Porque o apocalipse já é difícil demais pra ainda ter que comer urtiga achando que é peixinho-da-horta.