A deturpação do mandato: vereadores e a sede de poder

12/11/2024 01h01 - Atualizado em 12/11/2024 15h03
A deturpação do mandato: vereadores e a sede de poder


A cadeira de vereador, na teoria, deveria ser a trincheira da fiscalização e o espaço da legislação. Nas cidades, o vereador deveria ser aquele que olha de perto, que conhece os buracos das ruas, os problemas das escolas e as demandas da saúde. Mas o que acontece quando essa missão se perde em troca de interesses pessoais? Quando, ao invés de fiscalizar, o vereador pressiona; ao invés de legislar, arranca favores? É nessa inversão que se revela um dos maiores dramas das cidades brasileiras.

Há uma prática perversa que se espalhou pelos municípios: o vereador, que deveria vigiar o prefeito e cobrar soluções, passa a agir como um agente de barganha, interessado em transformar seu mandato em moeda de troca. E isso, claro, só prospera quando o prefeito fraqueja, quando a honestidade e a transparência ficam de lado. Afinal, para o vereador oportunista, não há espaço mais fértil do que uma gestão disposta a ceder ao apetite por favores, cargos e contratos. E o prefeito que não reza nessa cartilha, que tenta manter CPF limpo e compromisso com a cidade, acaba caindo em um jogo de pressões.

Quantas vezes já vimos prefeitos recém-eleitos, cheios de promessas e sonhos, sucumbirem ao poder das câmaras municipais? Aqueles que chegam com discursos de renovação e justiça logo percebem que, para governar sem turbulências, será necessário negociar com alguns "caciques" da casa legislativa. Para muitos vereadores, apoiar o prefeito vai muito além de princípios e visões compartilhadas: envolve cargos comissionados, contratos para apadrinhados, pequenos feudos dentro da administração pública. E assim, o que deveria ser um pacto pelo bem da cidade se transforma em um balcão de favores.

Fica então a questão: será que, nos próximos anos, veremos prefeitos e prefeitas com CPF limpos e intenções nobres resistirem a esse jogo? Porque a pressão é imensa, e a sede de poder de muitos vereadores, insaciável. O prefeito que busca fazer uma administração ética e independente enfrenta uma batalha dura. A começar pelo orçamento, que pode ser bloqueado em votações, até a criação de CPIs para intimidar e coagir. Um prefeito que insiste em não atender a essas demandas pessoais rapidamente se vê isolado, sabotado em sua própria gestão.

E o cidadão, onde fica nessa história? Para quem olha de fora, muitas vezes o conflito parece técnico, uma disputa política qualquer. Mas, na prática, é o cidadão que paga a conta. É ele quem vê o projeto parado, o posto de saúde sem verba, o buraco sem ser tapado. A cidade, que poderia avançar, patina enquanto o legislativo e o executivo travam essa guerra de interesses.

Os novos prefeitos que chegam cheios de boas intenções precisam se preparar. Resistir à pressão é difícil, mas não impossível. É preciso formar uma gestão que não dependa de favores e que se comprometa com o que realmente interessa: o bem comum. Uma prefeitura forte, ética, que não sucumbe a chantagens pode sim fazer diferente. Talvez, ao longo do tempo, o vereador que só sabe pressionar perceba que seu papel deve ser outro, e que o eleitor que ele representa deseja ver mais transparência e menos barganha.

A função do vereador é fiscalizar e legislar, mas, enquanto isso não for uma regra clara em nossas câmaras, viveremos nesse ciclo de disputas e favores. Que o próximo prefeito ou prefeita, então, consiga colocar a cidade acima dos interesses pequenos. E que a cadeira de vereador retome seu verdadeiro valor, para que o mandato se transforme, de fato, em um serviço para o povo, não em um trampolim para interesses pessoais. Quem sabe um dia a política municipal se veja livre dessa sede desmedida, e o cidadão passe a ter vereadores que se importam com o bem público. Porque, no fim, é disso que a cidade precisa: um olhar que cuide, não que cobre.