
Exilados pelo ENEM: A contradição do sonho universitário

Ontem, jovens de todo o Brasil viram o ENEM como a porta de entrada para um futuro melhor, um bilhete para a universidade e, quem sabe, uma chance de transformar a realidade ao seu redor. Mas essa porta, que na teoria deveria ampliar o acesso e democratizar o ensino, esconde uma armadilha sutil: uma corrida que termina longe de casa, em um lugar onde poucos conseguem fincar raízes. Porque, na prática, o ENEM empurra os estudantes para fora de seus estados, de suas comunidades, rumo a regiões distantes e desconhecidas, sem dinheiro, sem apoio e sem a mínima familiaridade com o novo habitat.
O jovem que encara essa maratona se prepara para a batalha do conhecimento, mas nem imagina o desafio maior que virá depois da nota. Em vez de encontrar um lugar seguro, familiar e acolhedor, onde possa aplicar seu esforço, ele é jogado para longe de sua família, de seu ambiente e de tudo o que conhece. E, assim, a recompensa pela nota vira um exílio universitário, como se a condição para realizar o sonho fosse deixar tudo para trás e se aventurar em terras desconhecidas, sozinho e desamparado.
A ideia de um exame nacional que permite concorrer a vagas em qualquer estado pode até soar bem no papel, mas o que vemos é um sistema que despersonaliza e desumaniza o aluno. Ao não considerar o contexto de cada jovem, suas raízes e suas condições, o ENEM transforma o acesso ao ensino superior em uma prova de resistência, onde o vencedor é aquele que sobrevive à distância, à falta de dinheiro e ao rompimento brusco de seu lugar de origem. Muitos, ao passarem no ENEM, se deparam com a dura realidade de um sistema que obriga a deixar a cidade natal, mas não oferece nenhum suporte para essa travessia – nem auxílio financeiro, nem moradia, nem transporte. E aí surge a questão: até onde é justo colocar um jovem nessa posição?
Antigamente, nos anos de chumbo, o regime militar implantou o sistema de créditos nas universidades justamente para fragmentar o estudante, tirando dele o sentido de unidade e pertencimento. Hoje, ironicamente, o ENEM cria uma lógica parecida, empurrando o jovem para longe de seu habitat, dissolvendo seus laços com a terra que o viu crescer. Ele se torna um nome em uma lista, uma nota deslocada para qualquer canto do país que tenha uma vaga. O pertencimento dá lugar ao desamparo, e o estudante se torna um andarilho de universidade, sem uma comunidade, sem a segurança de uma rede de apoio, sem as raízes que deveriam sustentar sua formação.
Esse êxodo forçado é um fardo enorme para os jovens e para suas famílias. É como se, ao buscar a educação superior, eles fossem condenados ao desarraigamento. Para muitos, que mal têm condições para se sustentar em sua cidade natal, encarar uma vida estudantil longe de casa é um desafio quase impossível. A educação, que deveria ser uma oportunidade de desenvolvimento e fortalecimento das comunidades, se torna um processo de dispersão, onde jovens promissores são arrancados de suas regiões. E assim, cada vez mais, vemos o Nordeste, o Norte e tantas outras partes do Brasil assistirem à partida de seus filhos para longe, sem a certeza de que um dia voltarão.
O que restará, então, dessas comunidades que perdem seus jovens para o exílio universitário? Como se desenvolvem regiões que assistem à partida de seu maior potencial humano? O Brasil, ao invés de promover a educação como um processo de inclusão, vem adotando uma postura de dispersão, quase como um fenômeno migratório dentro do próprio país. No final, o que o ENEM, com todas as suas promessas de democratização, realmente faz é criar uma geração de exilados, onde estudar se torna sinônimo de partir.
No Dia do ENEM, deveríamos parar para pensar se é mesmo essa a melhor forma de promover o ensino superior, se não estamos desvalorizando o laço entre o jovem e seu lugar. Porque o futuro, afinal, não é só uma questão de nota; é uma questão de pertencimento.