O voar num limite improvável
Nos dias monótonos, especialmente nos finais de semana, a solidão toma conta do quarto vazio. A luz do sol que entra pelas frestas da persiana desenha linhas no piso empoeirado, enquanto o silêncio é apenas quebrado pelo canto distante dos pássaros. Sem alternativas, a TV se torna a única companhia possível, uma fuga momentânea da própria solidão.
Envoltos em pijamas quadriculados e com semblantes fechados, acomodamo-nos no sofá com uma xícara de café fumegante nas mãos.
A textura áspera do tecido contra a pele e o calor reconfortante da bebida servem como um lembrete fugaz da nossa presença física. Pés para o ar, ligamos a TV e iniciamos a busca por algo interessante nos canais, focando principalmente nos de filmes e séries.
Apáticos, zappeamos pelos canais e paramos em um qualquer. A imagem na tela se transforma em um borrão de cores e formas enquanto o som se mistura em um ruído incompreensível. É como se estivéssemos navegando em um mar de opções, sem bússola e sem destino. Finalmente, paramos em um canal que exibe uma série de época aleatória.
Com ritmo lento, argumento insólito e arrastado, a série parece ter sido feita apenas para preencher o catálogo do streaming. A trama gira em torno de uma família disfuncional em um episódio qualquer, com personagens sem carisma e situações clichês.
Sem alternativas, entregamo-nos à história, ainda que a contragosto. É como se estivéssemos presos em um loop infinito de tédio e monotonia.
Foi assim que me senti ao assistir “Ferrari” de Michael Mann. Esse filme entra para minha lista de assistidos apenas uma vez, como um mero registro de uma tarde vazia.
Prefiro assistir “Speed Racer”, das Wachowski, pela sexta vez do que revisitar “Ferrari”. Um melodrama que não agradou-me e dificilmente a assistirei novamente.
Todavia, não quero ser totalmente injusto com a produção de Mann e com o argumento de Troy Kennedy Martin, baseado no livro “Enzo Ferrari: The Man and the Machine” do jornalista automobilístico Brock Yates.
Apesar dos problemas com os diálogos, a construção dos personagens (principalmente o de Adam Driver) e a condução da narrativa, as cenas de corrida são impecáveis.
Mesmo que pareçam longas e até mesmo desnecessárias em alguns momentos, elas me tiraram o fôlego e me causaram uma sensação quase instintiva de adrenalina.
O mérito por isso vai para a edição de Pietro Scalia, a direção de arte de Maria Djurkovic e, claro, a fotografia densa e soturna de Erik Messerschmidt.
Fora isso, uma cena em particular se destacou em minha mente, e devo confessar que me emocionou profundamente. Lágrimas afloraram em meus olhos enquanto eu a testemunhava. Refiro-me ao momento em que Ferrari vai à ópera.
Ao compasso de “La traviata, Act III: Parigi, o cara”, de Giuseppe Verdi, muito bem mixada por Lee Orloff e editada por Bernard Weiser, ele desvela uma clareza de sentimentos profundos.
No vai e vem dos flashbacks que revisitam sua vida conjugal, busca um golpe extraordinário de beleza no emaranhado das adversidades quotidianas, como carros serpenteando túneis ou presos em congestionamentos nas grandes avenidas de uma metrópole global, onde cada obstáculo parece afundá-lo um pouco mais.
A abertura, o recitativo, a ária e a nota alta – cada elemento da composição de Verdi ecoa em algum recanto da sua alma, assim como o significado e a ausência de sentido que percorrem suas veias, assemelhando-se a um dos seus velozes automóveis que busca alcançar o fim da pista vencendo mais uma dura corrida.
Em seguida, os aplausos reverberam, coincidindo com o momento em que nossas mãos soltam o apoio do assento. Pode ser ruidoso, contudo, ao abraçar esse tumulto, aprendemos a aceitar que a trajetória da nossa vida não será tão suave e previsível como o projeto meticuloso de um carro de luxo.
O caminho que percorremos é como uma estrada cheia de buracos e remendos malfeitos, e é nessa trajetória que, para o bem ou para o mal, vamos nos ajustando aos altos e baixos que ela nos apresenta.