O tempo e seus monstros

07/12/2021 04h04

Sentou-se na poltrona preta ao lado da pequena mesa. O couro sintético muito bem lustrado lhe confortava. Foi até a mesa e se serviu: uma dose generosa de Whisky puro. O gosto já era familiar, não mais queimou a garganta como a primeira dose. Ah! a primeira dose- pensou ele por um breve momento. Os pensamentos chegaram depressa e ele logo se enfureceu, lançando fora o copo, que se estraçalhou em um quadro a sua frente. A fúria lhe tomava o corpo e, depois de golpear a si mesmo, se lançou em uma profunda tristeza. Se permitiu chorar. Sentiu medo. Por instantes voltou a ser o pequeno Paulinho. Pequeno demais para tudo que lhe aconteceu.

Alguém tentava abrir a porta. No chão estava a pequena criança, escondida embaixo da mesa. Estava trêmula, suja e machucada. Ouvia os gritos da mãe, as garrafas quebrando. Quando olhou por debaixo da porta viu uma fita assimétrica escorrendo, era vermelha. Um vermelho sangue. Ouviu uma única frase com precisão: “você me desobedeceu”. Apagou. Acordou no dia seguinte na casa da avó. Nunca mais viu a mãe. O pai pagava a pensão e duas vezes por semana levava leite. Nada mais.

Bateram novamente à porta, dessa vez com maior intensidade. Ele ergueu a cabeça, estava a mil. Voltou à mesa e dessa vez pegou toda a garrafa de Whisky e virou. A primeira dose- pensou ele por um longo momento. Apagou novamente e em sua mente vinham os flashes da adolescência, sua exigência por perfeição. Do namoro ao casamento. Breves e bons momentos. Seria isso o importante nessa vida? Não sabia responder. Nunca parou para poetizar a vida, ela tinha que ser como era e pronto.

O casamento era sua esperança de ser melhor. Mas, a convivência o fez reviver seus traumas. A bebida era o consolo, a mamadeira que lhes foi tirada, o colo, o amor.

Até aquele dia sua vida nada mais foi que um amontoado de trabalho, obrigações e insanidades. Despertou novamente.

Pensava em voltar para casa, mas não tinha forças. Os pensamentos o consumia. Lembrou de Helena, sua esposa. Lembrou do dia que chegou em casa e ela estava fugindo. Naquele dia tudo que ele viu a sua frente foi a imagem da mãe que mal conheceu. Era ela personificada em Helena, esta que trajava um belo vestido vermelho. Um vermelho sangue.

Os instantes lhes passaram pela mente e ele parou diante de um espelho.

Estava ali o Paulo, homem feito. Mas, com medos e fragilidades de menino. Tomado pelos excessos de pensamento, já não suportou mais. Deslizou a mão e viu a vida escoar pelos dedos.

No chão, olhando para longe via  um campo e uma bela moça vindo ao seu encontro. Parecia vir buscá-lo. Seus longos cabelos pretos quase lhe cobriam todo o corpo. Quase não dava para ver o seu vestido. Um vestido curto e vermelho. Um vermelho sangue.