'Medicalizando' os sentimentos

19/10/2021
 

Marília chegou cansada, tinha percorrido quilômetros até ali. Sentou-se, Como de costume, dirigiu-se até a mesinha de canto e serviu um pequeno copinho de café, pegou três tarecos e começou a comer lentamente. O café estava amargo demais. Mas, o doce dos tarecos ajudava a equilibrar. Equilíbrio- pensou ela e sorriu. Sentando-se, em seguida, no sofá da sala de espera. A recepcionista nada falava, o deslizar dos dedos sobre a tela de um celular parecia tão mais interessante que, por um breve instante, Marília quis saber o que a moça olhava. Conteve-se.

De cabeça baixa, aguardava sua vez, enquanto ouvia de longe duas mulheres conversando: falavam sobre a vida, a rotina metódica, os dissídios enfrentados no casamento e os filhos. Marília ouvia tudo e tentava se colocar no lugar das mulheres. Porém, logo enrijecia a face e mudava o olhar para a moça a sua frente.

Longas horas de espera até chegar sua vez. A moça da recepção a conduz até o consultório do doutor Augusto. Marília entra, senta-se e ele inicia perguntando como ela estava. A moça incomoda-se com a indiferença do médico, que se mantinha com os olhos fixos sobre a folha, não dirigindo um olhar aquela que visivelmente não estava bem.

Marília relata que não dorme bem há dias. Que as dores de cabeça voltaram e que, frequentemente, tem pesadelos que atenuam suas crises de ansiedade. Falou tudo, enquanto do canto esquerdo lhe escorria uma pequena lágrima. Conteve-se.

O médico escreveu umas três ou quatro linhas, carimbou e, enfim, olhou para Marília.

Deve ser sua medicação que não está ajudando. Tome esta que receitei e vai se sentir melhor- disse-lhe por fim.

Marília pegou a folha e saiu. Passou na recepção, fez do papel guardanapo e, discretamente, pegou oito tarecos. Alguém em casa aguardava o mimo. Sorriu e se foi.

No caminho, milhares de coisas lhe inquietavam. O remédio que tomara por meses não fez efeito, mas mesmo assim continuou por tanto tempo. E agora esses novos. Lembrou da falta de olhares, da ausência de um gesto que a fizesse se sentir, de fato, melhor.

Chegando em casa, avistou de longe Helena, sua mãe, que no quintal de casa regava com muita dificuldade as margaridas. O braço esquerdo, paralisado há anos, fazia com que tarefas simples se tornassem complexas para ela. Mas só de vê-la saindo daquele quarto já era algo fantástico. A primeira vez que viu a mãe sair do quarto foi no dia em que seu pai foi encontrado morto. A pequena Marília já nem notava a existência de Helena na casa, se não fosse a tia Judite nem saberia como teria se criado.

Com um abraço de costas, Marília recebia nos braços a frágil mãe. Sentaram-se no batente e, estendendo-lhes as mãos, os tarecos surgiram radiantes aos olhos de Helena. Que sorriu e devorou em segundos todos eles. Eles eram doces e equilibravam-se perfeitamente com o amargo que ao fundo Helena sentia.

E ali, naquele fim de tarde o pôr-do-sol presenciava uma cena tão comum. Tão desprezível aos olhos de quem não tem tempo a perder. Mas era ali, naqueles instantes, que Marília sempre encontrava suas respostas, encontrava olhares e tanto, mais tanto conforto. Que voltar ao médico na semana seguinte era um mero hábito motivado pelo doce dos tarecos. Estes que, ao amargo do café traziam... equilíbrio.

Isabelle Mendes

Isabelle Mendes