O medo, no Brasil, tem uma cor e uma classe. O que comemorar, com a abolição?
Ao falar abolição da escravidão no Brasil – o último país das américas a libertar do jugo opressor e dos grilhões do cativeiro – os milhões de povos africanos que foram forçados a atravessarem o Atlântico para, depois de despirem-nos de seus títulos, nomes, religião, humanidade, serem mercadorias, pois eram assim tratados, como uma “coisa”, não como “alguém”, por cerca de três séculos; não é nada fácil, principalmente num país que, não raro, ainda segrega e mede-se esse “outro”, infelizmente, pela cor de sua pele e por sua condição financeira.
Para simplificar – o que nem sempre é bom –, pois isso incorre, muitas vezes, em deixar ausentes eventos e fatos de grande importância história. Até porque, ninguém melhor para falar desse assunto, que as pessoas que vivem na pele, os muitos problemas que aqui serão abordados... Trago então, uma abordagem histórica. Mesmo, correndo o risco de cometer erros, propomos a falar daquele 13 de maio de 1888, bem como de suas consequências, quando a Princesa Isabel, Regente naquele instante, assinou a Lei Áurea (LEI Nº 3.353, DE 13 DE MAIO DE 1888.), cuja redação diz o seguinte:
“A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembleia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:
Art. 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.”
A partir daquele momento, estava extinta a escravidão no país. A historiografia nos diz, também, que a assinatura da Lei Áurea não foi um ato matriarcal de benevolência da regente. Ao contrário, porque muitos interesses, econômicos e políticos estavam envolvidos nesta questão. Desde o início da segunda metade do século XIX, quando, aos ingleses, não mais interessava a escravidão, já que, uma vez pioneira na Revolução Industrial, seus ganhos com um Mercado Consumidor, exigia trabalho assalariado e não mais o escravismo, que obliterava o consumo em massa. Mas também, lembremos que, logo após a “abolição”, pouco mais de um ano mais tarde, o Brasil se tornaria uma República. Convergências que projetaram as principais mudanças no país, no final do século XIX.
[caption id="attachment_500685" align="alignnone" width="271"] Livre, Mas Escravizado Pela Pobreza[/caption]Foi neste cenário que, o à época, ex-escravo, “liberto”, estava “LIVRE, MAS NEM TANTO”, porque aos poucos se tornaria um pária. Embora, formalmente falando, uma lei declarava sua “libertação”, assim como também ocorreu, décadas antes nos Estados Unidos da América – também no Brasil, estes trabalhadores precisaram lutar, por anos a fio, pela Cidadania, Educação e Trabalho. E, como vemos nos dias atuais, depois de mais de uma centena de anos, a cidadania, educação e o direito ao trabalho, constam em nossa Constituição, mas os processos de Exclusão, Racismo, Segregação e Preconceitos, foram aumentando os muitos abismos sociais vigentes.
À margem da sociedade, pois uma vez “livres”, mas sem cidadania plena, pouca coisa mudara. Sua condição elevada a “gente”, tirava-lhes o “ser uma coisa”, e agora eram “pessoas”; contudo, ao não terem acesso à educação, à terra, à cidadania e nem ao trabalho. Sim, – também é notório – que havia um processo de “branqueamento”, defendido por boa parte das elites brancas no país, para que, com a vinda de trabalhadores, imigrantes “brancos” europeus, incentivados a virem para terras brasileiras, ocuparam os lugares e postos de trabalhos, que outrora, eram realizados pelos escravos. Eles foram, cada vez mais, explicitamente segregados.
E quais as consequências imediatas, desse processo nefasto? Uma vez que sempre estiveram à margem da sociedade, primeiro na condição de “não gente”, depois, como párias. Surgiram os mais cruéis destratos a que um ser humano possa suportar. Ficaram relegados às favelas, morros, periferias, quilombolas – ou seja – cada vez mais distantes dos centros urbanos, que, em sua maioria era e ainda é branco. Uma dessas situações, que, até os dias atuais, persiste, está bem descrita, na obra do antropólogo e estudioso da sociedade brasileira, Darcy Ribeiro, onde ser ler:
“Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada pela exacerbação do preconceito classista e pela consciência emergente da injustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões anárquicas que conflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente é que explica a preocupação obsessiva que tiveram as classes dominantes pela manutenção da ordem. Sintoma peremptório de que elas sabem muito bem que isso pode suceder, caso se abram as válvulas de contenção. Daí suas "revoluções preventivas", conducentes a ditaduras vistas como um mal menor que qualquer remendo na ordem vigente.
É de assinalar que essa preocupação se assentava, primeiro, no medo da rebeldia dos escravos. Dada a coloração escura das camadas mais pobres, esse medo racial persiste, quando são os antagonismos sociais que ameaçam eclodir com violência assustadora [...].” (O POVO Brasileiro, pag. 21)
O “medo” no Brasil, passou a ter uma “cor/classe”. Quer seja pobre ou negro, aqui copiou-se a ideia de que o que era bom, provinha dos brancos. O que não prestava, dos afrodescendentes e pobres. E, a todo instante de tensão social, quando de alguma revolta e/ou insatisfação das camadas mais pobres – em sua maioria de coloração mais escura – era a justificativa que as elites brancas, usavam da truculência para segregar mais ainda, aumentando os abismos sociais, legando-os ao ostracismo social. Estavam ali, ausentes, a segurança jurídica – esta, majoritariamente branca e elitizada – e a tão sonhada “igualdade jurídica”, que, não raro, ainda anda a passos de tartaruga.
A “violência” no Brasil, passou a ter uma “cor/classe”. Não só porque, segundo alguns dados afirmam que mais da metade os encarcerados no sistema prisional são denominados negros e provém das periferias. Mas principalmente por causa de um processo de exclusão social e preconceitos. A VIOLÊNCIA, há que se explicar, tem muitos significados: cerceamento da justiça e do direito; coação, opressão, tirania. Ou seja, onde houver privações e cerceamento, impedimento, opressão, por exemplo, há também a violência.
Recentemente, no Rio de Janeiro, o exército fora chamado para ajudar a “pacificar” e combater a violência naquela cidade maravilhosa. Poucos meses depois, a vereadora Marielle Franco foi assassinada – quem matou Marielle? E, há poucos dias, uma ação da polícia deixou um saldo de 28 mortos – a maior da história recente. Foram jovens, envolvidos ou não com o crime organizado – em sua maioria pobres e de cor escura. Sobre as muitas violências, lembro de ter escrito, há algum tempo, o seguinte:
“A violência nasce das tensões sociais. Das privações sociais. Da falta de perspectivas – mas não quero justificar, tão pouco generalizar. Estou falando de uma parcela que, violentada ou não, usa da mesma violência para justificar suas práticas. NUMA SOCIEDADE EM QUE A CORRUPÇÃO ENGORDA ALGUNS POUCOS, EM DETRIMENTO DA MAIORIAS, POUCO SE MUDARÁ. É preciso ir no cerne do problema, nas causas geradoras dessas violências. É preciso investir massivamente, por exemplo, na Educação (que poucas vezes ou quase nunca sobre os morros). O Estado não sobe os morros, só as Igrejas Evangélicas, as ONGs, o Tráfico e Crime Organizado e a Polícia. O Estado está ausente no seu dever ser. E é aí que a desigualdade social aumenta e em consequência, a violência. PORQUE POBREZA É, TAMBÉM UM TIPO DE VIOLÊNCIA, ela priva os menos favorecidos do mínimo de Dignidade Humana.”
Não basta ter empatia, solidariedade, leis, boa vontade, se não resolvermos o que gera violência/pobreza/racismo. UMA SOCIEDADE QUE NÃO DÁ AS MESMAS OPORTUNIDADES, GERARÁ CADA VEZ MAIS VIOLÊNCIA. Porque ela acentua os processos de desigualdade social. Mas a violência também está dentro de nós. Em parte, temos uma Política geradora de violência. E até uma Educação em que, uns poucos, com melhores condições e recursos para estudo, obtém os melhores cursos nas faculdades. Não fosse as muitas políticas de inclusão, as Universidades, seriam majoritariamente ocupadas pelas classes mais abastadas. Violência também é o jeito como vemos e enxergamos o outro, com preconceitos e discriminação. É a forma como tratamos desigualmente, estereotipando-os pejorativamente, aqueles que diferem dos padrões que achamos certos e/ou bons. Infelizmente, violência, também é um estado de espírito.
[caption id="attachment_500678" align="alignnone" width="298"] google images[/caption]Por fim, é preciso e urge o combate ao Mito da Democracia Racial: “O mito da democracia racial dissimula o racismo existente na sociedade brasileira, que deve ser entendido de maneira estrutural, e não apenas individual.” Em 1838, Karl von Martius argumentava que o Brasil era formado por três rios: um branco, o maior; um vermelho, menor; e um negro, ainda menor, defendendo uma hierarquia entre essas “raças”. No século XX, Gilberto Freire cunhou o termo Democracia Racial, mas foi Florestam Fernandes que percebeu que esta “democracia racial” – ou seja, que no Brasil, as relações sociais são harmoniosas entre as “raças” – na verdade não passa de um Mito. O racismo, portanto, não é uma “questão de opinião”. De fato, a opinião de que não há racismo no Brasil está carregada, mesmo inconscientemente, de uma ideologia prejudicial para o combate da violência: a da democracia racial.[1]
[1] OKA, Mateus. Democracia racial. Todo Estudo. Disponível em: https://www.todoestudo.com.br/sociologia/democracia-racial. Acesso em: 11 de May de 2021.