O Luto da Esquerda Latino-americana

07/12/2020 10h10

Morreu na madrugada do último domingo, 6 de dezembro, aos 80 anos de câncer de pulmão, o médico oncologista Tabaré Vázquez, 39º presidente (2005-2010) e 41º presidente do Uruguai (2015-2020). Vázquez não resistiu e perdeu a luta contra o câncer de pulmão, morrendo às 3 horas (hora local), enquanto repousava em sua residência. Não houve velório, o corpo foi velado em uma cerimônia íntima e o cortejo fúnebre partiu ao meio-dia percorrendo parte da cidade de Montevidéu até o cemitério de La Teja, zona oeste da capital do país.

BREVE CRONOLOGIA POLÍTICA DE VÁZQUEZ

Entre 1990 e 1995, Vázquez foi o primeiro prefeito de Montevidéu pela coalizão Frente Ampla. Referência para esquerda progressista latino-americana Vázquez foi um dos mais influentes líderes da Frente Ampla, coalizão eleitoral de esquerda formada por vários partidos políticos e organizações da sociedade civil. Desde sua criação, em 5 de fevereiro de 1971, a Frente Ampla Uruguaia entendeu a mobilidade populacional como um dado da realidade política que convoca à unidade democrática, progressista e anti- imperialista na qual seu programa se baseou (MERENSON, 2017). O partido de frente manteve ao longo de sua trajetória o caráter de força política transformadora, a luta por reformas estruturais democráticas com um programa político que é o oposto do que propõem os partidos das classes dominantes locais e latino-americanas (CARVALHO, 2020).

Em 1994, galgou sem sucesso o cargo de presidente da República Oriental do Uruguai, recebendo um total de 30,6% da porcentagem de votos. Em 1999, disputou novamente o cargo recebendo 48% dos votos no segundo turno das eleições, perdendo para o advogado liberal Jorge Batlle Ibáñez (1927-2016), filho do 30º presidente do Uruguai, Luis Batlle Berres (1897-1964), sobrinho-neto do 21º presidente do Uruguai, José Batlle (1856-1929), e bisneto do 8º presidente do Uruguai, Lorenzo Batlle (1810-1887). Na corrida eleitoral de 2004, venceu com 50,45% do total de votos, eliminando a obrigatoriedade do segundo turno. Foi reeleito em 2014, com 56,63% do total de votos, vencendo do candidato do partido Nacional, o advogado Luis Lacalle Pou (hoje, 42º presidente do Uruguai).

Em 2005, Vázquez se tornou o primeiro presidente de esquerda do Uruguai pós-ditadura civil-militar uruguaia (1973-1985). No posto de líder da notável coalizão Frente Ampla, sua vitória eleitoral pôs fim a décadas de hegemonia bipartidária de Blancos e Colorados, dois grupos de centro-direita que dominaram a política uruguaia desde a redemocratização do país em 1985. Contra todas as intempéries naturais do jogo político uruguaio, a Frente Ampla ficou no poder por 15 anos, até março deste ano, com duas gestões notáveis, a de Tabaré Vázquez (2005-2010/ 2015-2020) e a de José Pepe Mujica (2010-2015), outro personagem regional do progressismo latino-americano.

Em agosto de 2019, período que se aproximava do final do segundo mandato, Vázquez anunciou que havia realizado uma série de exames e acabou detectando um nódulo pulmonar com características muito firmes e que poderia ser um nódulo maligno. Cinco dias depois, se submeteu a uma intervenção médica que confirmou o tumor canceroso. Em dezembro de 2019, o Governo noticiou através de nota oficial a remissão do tumor e considerou o presidente curado. Ainda em dezembro, Vázquez chegou a viajar para a Argentina para participar da cerimônia de posse do presidente Alberto Fernández. Em março de 2020, passou oficialmente a faixa presidencial a seu sucessor, o advogado conservador Lacalle Pou. Na semana passada, veio a público o estado de saúde do recém ex-presidente do Urugua.

GESTÃO VÁZQUEZ (2005-2010) / (2015-2020)

No primeiro governo, Tabaré Vásquez, aplicou políticas pragmáticas e de reformas sociais, num quadro de dificuldades econômicas e financeiras geradas pela desastrosa política de seu antecessor, Jorge Batlle. Preservando a estabilidade financeira, conseguiu combater o desemprego e assegurar a redução da pobreza (CARVALHO, 2020).

Líder progressista apoiado pelos partidos da Frente Ampla e pelos movimentos sociais, Tabaré Vázquez realizou uma política ativa de defesa dos direitos humanos, buscando esclarecer a verdade sobre os crimes de lesa-humanidade cometidos pela ditadura militar (1973-1985). Essas políticas resultaram em penas de prisão de violadores dos direitos humanos, torturadores e responsáveis pelo desaparecimento e assassinatos de militantes da esquerda. Vázquez contou com o apoio das forças progressistas e movimentos sociais, mas também causou a insatisfação destes quando vetou ‘‘ por motivo de consciência’’, a lei de descriminalização do aborto, em 2008 (CARVALHO, 2020).

O segundo mandato, a partir de 2015, foi marcado, segundo suas palavras, pela ‘‘austeridade republicana e a transparência’’, que se mesclavam com o compromisso de realizar reformas sociais em nome do aprofundamento da democracia, da soberania nacional e da justiça social (BRASIL 247, 2020).

Foi um entusiasta do Mercosul e da integração latino-americana e aliados dos líderes do ciclo progressista que a região viveu durante a primeira década do século XXI, ressalvado um entrevero que teve com a Argentina entre 2005 e 2006. Foi amigo de Lula, Fidel Castro e Hugo Chávez e ajudou a impulsionar políticas progressistas na região. Apoiou o Fórum de São Paulo, de cujas reuniões participou, quando o Uruguai sediou seus encontros. A relação de Tabaré com os comunistas e líderes revolucionários latino-americanos é um exemplo a ser estudado, assim como a experiência da Frente Ampla de convergência entre setores que, mantendo sua independência ideológica e de orientação política, perseveram na construção da unidade. Tabaré Vázquez era um social-democrata progressista e sempre se empenhou para que a Frente Ampla mantivesse o caráter de uma coalizão de esquerda. Tabaré foi o líder máximo da Frente Ampla e ultimamente era seu presidente de honra (BRASIL 247, 2020).

O professor de ciências políticas Miguel Serna, da Universidade da República, afirma que Vázquez assumiu ‘‘ um país que vinha de uma crise’’ e, ao encerrar seu governo, ‘‘ deixa uma casa muito mais arrumada’’.

Segundo dados oficiais, durante os quase cinco anos do governo Vázquez, o Produto Interno Bruto (PIB) do Uruguai cresceu mais de 30%, a pobreza passou de 31,9% para cerca de 20%, e o desemprego caiu de 13,1% para 7%. A expansão econômica incluiu crescimento recorde das exportações agropecuárias e o incremento, inédito, da produção industrial (BBC BRASIL, 2009).

Em entrevista concedida à BBC Brasil, no ano de 2009, o deputado governista Luis Gallo, da coalizão Frente Ampla afirmou:

‘‘O governo de Tabaré estabeleceu as bases do crescimento econômico com distribuição de riqueza. Os sistemas público e privado de saúde foram integrados para que todos sejam atendidos da mesma forma. A reforma tributária permitiu que os que mais ganham paguem imposto de renda, o que não existia’’.

Segundo o analista político Eduardo Bottinelli, do Instituto de pesquisas Factum, de Montevidéu, a gestão de Tabaré teve 80% de apoio popular, isso é histórico.

PERFIL VÁZQUEZ

Nascido em uma família de classe média, médico pela Universidade de La República, com especialização em oncologia, se tornou oncologista após a morte dos pais e da irmã em decorrência do câncer. Quando eleito presidente em 2005, Vázquez já era renomado na comunidade médica uruguaia e referência no país. Durante seu governo lutou bravamente contra a indústria do fumo, ao ponto de modificar a legislação contra o consumo de cigarros no Uruguai que lhe rendeu um processo milionário da Philip Morris no Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI). Em 2016, o centro foi favorável ao presidente e obrigou a indústria a arcar com as despesas e honorários do processo.

Sempre discreto e reservado, o ex-presidente Vázquez era introspectivo, ponderado, silencioso e diplomático, em suas aparições públicas falava somente o necessário e não era fã das redes sociais (não usava). Segundo ele, quando um presidente fala, um país fala, e o presidente não pode ir além de dizer às coisas que interessam às pessoas, costumava dizer parafraseando o 21º presidente da França (1981-1995), François Mitterrand (1916-1996). Infelizmente, não conquistou fama internacional como seu correligionário Pepe Mujica. Entretanto, no Uruguai, era muito prestigiado e admirado até mesmo entre seus detratores. Moderado em comparação a seu companheiro Mujica e sem seu carisma, Tabaré, como era afetuosamente chamado pelos uruguaios, era um símbolo da ala mais ao centro da Frente Ampla.

Um mês antes de entregar o cargo, Vázquez foi celebrado e ovacionado por uma multidão no bairro de La Teja, em Montevidéu, onde nasceu em 1940. Disse emocionado:

‘‘ Nada se conquista sozinho, o que foi conquistado nós fizemos juntos, com todos participando, trabalhando com a gente, convencendo, ganhando consciência’’.

Tais palavras ecoam como o fim de uma era virtuosa na história política e civil do Uruguai. Disse ainda com os olhos marejados:

‘‘ O legado que nossa Frente Ampla vai deixar ao povo uruguaio é um legado que temos que defender, apoiar, estar convencidos da importância que tem e que é acima de tudo isto que temos feito juntos’’.

Segundo o editor internacional do Brasil 247 e da página Resistência, José Reinaldo Carvalho, com a morte de Tabaré Vázquez, as forças de esquerda uruguaias e latino-americanas perdem um dos seus importantes líderes.