Artigos

As relações amorosas, a intromissão do direito

05/05/2022
As relações amorosas, a intromissão do direito

O Estado de Direito é precipuamente um estado de normas. A civilização liberal inventou os direitos como declaração: direitos de proteção, de acesso, de regulação de atos. Todavia, nem tudo o que nos expressa é regulável.

O liberalismo construiu o Direito de cidadania em oposição ao despotismo, incluído o estatal. A normatização da vida extrapolou a pretensões originais. Um liberal “raiz” diria que nos normatizamos demais. Explico:

Podemos ser definidos de muitos modos. Aqui, agora, nos delimito como um complexo bioquímico. Um complexo bioquímico que se recompõe a si mesmo quando sofre alterações no seu estado emocional, adaptando-se.

Ou talvez seja o contrário: bem podemos nos ver como um complexo bioquímico que, em sendo provocado por determinadas situações externas, reage, alterando-se em sua condição, afetando o seu estado emocional.

Suponho que somos uma e outra coisa em contínua afetação recíproca: um complexo bioquímico variável e uma condição emocional instável. Esses dois estados interagiriam permanentemente entre si e com o meio.

Como estado emocional todos nos admitimos. Temos as emoções em conta elevada, como se fosse um apanágio, um valor definidor da condição humana. Quem não tem emoções não tem sentimentos, não seria humano.

Emoção é coisa vista como algo do coração. Bem, emoção é uma manifestação orgânica. É que temos essa herança platônica, acredita-se na dualidade corpo e mente. Mas, somos uma unidade, um corpo-que-pensa.

Somos uma complexidade ambulante contida num espaço organizado que se chama corpo. Essa complexidade move-se, pensa (algumas pensam-se), sente, emociona-se, reage, ama. Aliás, amor é emoção, ou é química?

Amor é uma emoção que objetifica alguém. Estamos tomados de emoção amorosa quando desejamos ansiosamente outra pessoa e a fazemos objeto desse sentimento. Nós a queremos com ímpetos possessivos.

Esse querer altera o complexo bioquímico que somos. Ou alterações no complexo bioquímico que somos produz esse querer. Ou ambas as coisas são uma coisa só; ou se desencadeiam concomitantemente, “dialeticamente”.

Se o lance acontece, acontece oxitocina. Ou acontece oxitocina fazendo com que o lance aconteça. Vale saber: a oxitocina é um hormônio que se adiciona ao complexo bioquímico enquanto perdura o amor. Ou vice-versa.

Então, sob oxitocina, já não comandamos muito nossa vontade. O amor, parece, nos irracionaliza. Em estado de amor, ou estamos tomados de emoção, ou estamos tomados por um hormônio. É questão não resolvida.

Não sou bioquímico, mas se vale um “causo” que me foi contado, narro-o: a mulher percebeu que o “seu” homem perdeu o interesse. O médico recomendou, providenciaram uma injeção de oxitocina. O amor voltou.

Voltou, mas sumiu em breve tempo. Ou mais injeção, ou nada. O casal foi sensato. Cada parte se foi da outra. Acontece que muitas vezes acaba a vontade “interna” de um casal, e se despertam vontades por “externos”.

Vontade por “externos” é normal, mas os casais a sacrificam pelo que chamam de fidelidade amorosa, o que denomino monogamia, porque não há monotesão. A reciprocidade só se estende se houver oxitocina circulando.

Muitas vezes, com pouca oxitocina (desejo escasso), mas com a ajuda de tadalafila (viagra) o episódio vai. Se não houver vontade, a sildenafila (um eretor) faz o homem pegar no tranco. A mulher, se quiser, “concede”.

Nessas alturas as partes amorosas já estão se tolerando. Alguns o fazem em nome de valores relevantes (filhos, companhia terna, bens, aparência social etc.). Outros se aturam numa nutrição doentia de ódio.

Ódio também é hormônio. Ou o hormônio gera o ódio, ou o ódio gera o hormônio. A relação é rancor, cortisol, estresse, mas não sei a ordem dos acontecimentos. Sei que isso mantém a relação afetiva (ódio é afeto).

Filósofos pensaram o amor, divagaram sobre ele. A bioquímica e a endocrinologia o investigam. As religiões o enquadraram, constrangendo corpos. Ambições normativas deram contornos jurídicos à relação amorosa.

As dificuldades do Direito para tutelar o amor estão às vistas. As normas apenas resolvem suas violências derradeiras. Nos processos que desmancham relações as partes usualmente se insultam a si e ao seu contrato nupcial.

É impraticável dar molde jurídico às coisas do querer. É insensatez buscar garantia legal para a relação amorosa. A sua legalização burocratizou o afeto, circunscreveu o sexo, contratou o tesão. O corpo vai desobedecer.