Variedades

Na batida de Jackson

21/09/2020
Na batida de Jackson

Entre as diversas produções artísticas interrompidas pela pandemia do novo coronavírus, o musical Jacksons do Pandeiro parecia ser mais uma vítima – a estreia prevista para o início do ano foi cancelada pelo fechamento dos teatros e a determinação do isolamento social. “Estávamos próximos do terço final do espetáculo, com a linguagem já definida”, lamenta-se Alfredo Del-Penho, um dos membros da Cia. Barca dos Corações Partidos, grupo criador do espetáculo.

A pausa, no entanto, durou menos que o esperado porque a Barca percebeu que era possível apresentar o musical, desde que um rigoroso protocolo sanitário fosse seguido. Assim, no dia 10 de outubro, Jacksons do Pandeiro será apresentado ao vivo, às 20h, no canal de YouTube da companhia e também no Canal BIS, a partir do teatro da Cidade das Artes – e, feito hoje considerado raro, com os sete integrantes do grupo, além de três convidados, encenando lado a lado no palco. Há a possibilidade de a peça entrar em cartaz no fim de outubro.

Para que isso se tornasse realidade, o grupo seguiu um meticuloso plano. “Todos fizemos teste de covid e, então, cumprimos uma quarentena para então começarmos os ensaios presenciais”, contra a produtora Andréa Alves, lembrando que os componentes se comprometeram a não ter contato com ninguém fora de seu convívio habitual para evitar contágio.

Tal decisão só foi possível porque a Barca fez valer a aliança que une seus componentes – afinal, a companhia foi criada em 2012 a partir do entrosamento espontâneo em torno dos atores que encenaram, naquele ano, Gonzagão – A Lenda. Ao grupo, juntou-se Andréa Alves e nasceu a Barca, que logo pavimentou um caminho original, quebrando as regras tradicionais do teatro musical ao fugir das imposições do canto desse gênero e ao abrir mão de encenações carregadas de detalhes suntuosos, apostando na originalidade.

E, observando com atenção, a interrupção provocada pela pandemia e a retomada de agora são fatos inesperados, quebras na trajetória planejada que dialogam perfeitamente com o estilo consagrado por Jackson do Pandeiro (1919-1982) – considerado por muitos críticos como um dos grandes musicistas brasileiros (comparável a João Gilberto na genialidade), Jackson brincava com o ritmo e as palavras, sempre provocando surpresa. “Ele aprimorou o conceito de síncope na música, ou seja, quando a nota subverte a expectativa”, observa Eduardo Rios, que assina a dramaturgia do espetáculo ao lado de Braulio Tavares.

Basta observar Sebastiana, um dos clássicos de Jackson. O solista dá o início: “Convidei a comadre Sebastiana/Pra cantar um xaxado na Paraíba/Ela veio com uma dança diferente/E pulava que só uma guariba/E gritava…”. Nesse instante, o coro assume: “A, e, i, o, u, ipsilone…”

“Sua instintiva musicalidade é própria, única”, escreveu o crítico João Máximo, do jornal O Globo, em 2004. “Ele parecia temperar o caráter, digamos, agreste da voz com divisão toda sua, surpreendente a cada intervalo, somando a ela uma agilidade, uma sinuosidade, da qual raros sambistas de bossa eram capazes.”

Foi tal descoberta que orientou a diretora Duda Maia. “Esse universo rítmico do Jackson marcado pelas quebras – quando se espera uma coisa do canto e vem outra – acabou por também inspirar a concepção do espetáculo”, conta ela que, depois de uma reflexão, percebeu não ser surpreendente tanto desvio na rota desse musical, que vem sendo gestado desde 2017. “Há uma relação direta com os desvios propostos pelo Jackson.”

Duda pensou, portanto, em um espetáculo marcado tanto pela quebra do ritmo nas canções como nas interpretações. “É um coco acelerado”, diverte-se ela, referindo-se ao gênero musical do qual Jackson era um expert e cuja “uniformidade está na ausência de uniformidade”, na definição de Mário de Andrade. Não satisfeita, pediu ainda que André Cortez criasse um cenário que lembrasse um parquinho com piso irregular, com ondulações e espaços limitados. “É preciso saber manter o equilíbrio”, conta o ator Fábio Enriquez.

“Esse é o mais complexo espetáculo que já dirigi – há uma engrenagem que, se uma peça falhar, derruba as outras, como um dominó”, observa Duda, que trabalhou com o grupo da Barca em Auê (2016), um dos primeiros trabalhos da companhia. Há semelhanças nos espetáculos, pois ambos exigem um elenco versátil e, ao mesmo tempo, integrado.

“A Barca reorganizou o fazer teatral”, conta o pernambucano Lucas dos Prazeres, um dos três artistas convidados para o espetáculo – os outros são Everton Coroné e Luiza Loroza. “Esse espetáculo, por exemplo, traz uma energia cardíaca – tanto do pulso como da afetividade. É um trabalho em que a individualidade se torna coletiva.”

E, nesse caso, o trabalho de Jackson encontra ressonância na forma de atuar do pessoal da Barca. Como pensava a música de forma livre, sem se preocupar com a divisão tradicional do ritmo, ele brincava com as palavras, misturando a forma de dizer as frases. “E nós não temos pudor em nos apropriarmos da obra de Jackson e criar novas melodias e letras que dialogam com o trabalho dele”, observa Eduardo Rios. “Musicamos palavras em homenagem a Jackson”, completa o também ator Renato Luciano.

Para atingir um grau de intimidade com a obra de Jackson do Pandeiro, o grupo fez uma profunda investigação, capitaneada por Alfredo Del-Penho que, há quase 20 anos, pesquisa os cocos, toadas, rojões, frevos, baiões e sambas deixados pelo artista paraibano. Nesse empenho, que consistiu em ouvir e selecionar 435 canções interpretadas por Jackson, o músico desvendou características importantes da personalidade do músico como a religiosidade e a pluralidade de personagens criadas por ele. “Jackson também citava vários lugares e diversos animais”, nota Del-Penho, que divide a cena também com Adrén Alves, Beto Lemos e Ricca Barros.

O resultado da pesquisa poderá ser visto pelo público no dia 10 de outubro, com a transmissão online do musical, com direção de Diego de Godoy, em conjunto com Duda Maia. “O espetáculo é preparado como teatro, mas, na live, terá o ângulo determinado pelo olhar de Diego”, conta a encenadora. “Ele vai buscar o diálogo com a câmera e, caso precise em alguma cena específica, posso mexer na posição dos atores.”

Godoy também vai mostra ângulos que o espectador comum, o que estaria no teatro, não poderia ver, como cenas vistas do alto. E, para os saudosos, o programa do espetáculo poderá ser baixado a partir de um QR code. “Vai ser possível descobrir a força das letras das canções”, diz Andréa Alves.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Ubiratan Brasil
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