Variedades

Sob o peso do racismo e do atraso

07/06/2020

Em abril do ano passado, João Paulo Miranda Maria migrou para a França com a mulher e os dois filhos, atualmente com 9 e 6 anos. Foi para o que seria um breve período, para fazer a pós-produção de Casa de Antiguidades. A coprodução internacional implicava o compromisso de finalizar o filme na França. Ficou pronto, foi selecionado para o Festival de Cannes, que, em 2020, não se realizará, como tradicionalmente, na Croisette, mas através de parcerias com grandes eventos de cinema de todo o mundo no segundo semestre.

João Paulo, de 37 anos, ainda não sabe os detalhes, como e em que circunstâncias seu filme será apresentado. Só sabe que Casa de Antiguidades sempre esteve na mira do festival. “Falavam do filme para todas as seções. No final, seria para a competição, que agora não haverá. Mas o festival quer chamar a atenção para os 53 filmes selecionados, e para mim é fundamental, como estreante.” Ele pode ser estreante no longa, mas já foi testado nos curtas, e até premiado em Cannes.

Começou a fazer cinema no interior de São Paulo, em Rio Claro. Estudou no Rio, voltou à sua cidade, deu aula, criou um coletivo, Kino-Olho, em homenagem a Dziga-Vertov, e o grupamento se mantém ativo após sua ida à França. Casa de Antiguidades é um filme pessoal. Embora não seja autobiográfico, tem muito a ver com sua origem. “A cidade é muito conservadora, a família dividiu-se nos últimos anos. Queria refletir sobre isso, mas não imaginava que o filme fosse surgir nesse momento de pandemia, num quadro de nova radicalização e ainda por cima em meio a todas essas manifestações antirracistas nos EUA e na Europa.” O antirracismo tem tudo a ver.

Casa de Antiguidades é sobre um negro idoso, o que seria o grupo vulnerável, de risco. Antônio Pitanga é quem faz o papel. Ele precisa trabalhar e vai para uma comunidade fictícia de austríacos no Sul do Brasil. Na casa do título descobre uma coisa que remete a acontecimentos passados, mas que ainda persistem. Reage feito bicho, de forma selvagem. Enfrenta preconceito. “O filme é contemporâneo, num clima que evoca os anos 1970, a época da ditadura e eu diria até que é meio futurista, mas retrô. Não é de gênero, mas tem elementos de faroeste, tem suspense.”

O que João Paulo Miranda Maria não tem dúvida é que se trata de um filme radical. “Não fiz para agradar a ninguém, não é um filme fácil. É o filme que acho que tem de ser feito neste momento.” Ele conversa com o repórter pelo telefone da mesma localidade na periferia de Paris em que viveu Georges Méliès.

“Moro na mesma rua em que ele morava”, conta. A França começa a relaxar as medidas de isolamento. A flexibilização chegará aos cinemas no dia 22, com a promessa de reabertura das salas, com toda segurança e medidas excepcionais de distanciamento. João Paulo tem um filho especial. “Acho que foi a maior descoberta que fiz aqui. Uma coisa muito bacana de cidadania. Meu filho recebe aqui um atendimento, na escola inclusive, que mostra como estamos atrasados no Brasil. Aqui, o problema não é individual, nem da família. É da comunidade, da sociedade como um todo.”

Ele conta como fez seu primeiro curta com dinheiro de rifa. Command Action custou R$ 1 mil e foi selecionado para Cannes. “Achei que era sorte de principiante, mas aí fiz outro, com menos dinheiro, R$ 500, e A Moça Que Dançou com o Diabo não só foi selecionado para a competição de Cannes como foi premiado. Conheço o glamour do festival, mas estou gostando da ideia de que este ano Cannes vai se despir de tudo isso. Nada de frescura, o que importa é o cinema, os filmes.”

João Paulo admira os autores, os radicais da linguagem e da política. No Brasil, Mário Peixoto e Glauber Rocha são seus preferidos. No cinema internacional, Robert Bresson e Bela Tarr. Todo esse radicalismo autoral deve ter sido adoçado por sua outra grande preferência, Eduardo Coutinho. O homem (o artista) que amava a conversa e possuía o segredo de revelar/entender o outro. Tem a ver com o movimento de Casa de Antiguidades.

A produção brasileira é da DeBossa, em parceria com a francesa Maneki. De lá, João Paulo segue preocupado com as notícias do País. O filme dele é sobre o mundo arcaico que pesa sobre o presente. “É uma história de vingança”, resume. Antônio Pitanga, de 81 anos – que completa dia 13 -, traz consigo a bagagem do Cinema Novo. Em Rio Claro, o Kino-Olho segue firme.

“O coletivo fez um vídeo que a CNN premiou como melhor de todo o mundo.” O cinema como ferramenta de investigação da realidade. João Paulo Miranda Maria e seus amigos estão levando o nome do Brasil para todo o planeta, na sequência da repercussão internacional que a produção nacional teve no ano passado.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Luiz Carlos Merten
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