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Alento para rumos democráticos

16/06/2020
Alento para rumos democráticos

De onde saiu a ideia maluca de colocar o Brasil, com suas contradições, dentro de um ônibus? De fazer um filme sem roteiro, mas com uma ideia (legítima) na cabeça?

Retrospectivamente, Caco Ciocler é o primeiro a admitir que as chances de que Partida não desse certo eram enormes, mas deu certo. Partida estreou na Mostra do ano passado. Integra a seleção do Cine Drive-in que o Belas Artes inaugura no Memorial da América Latina, a partir da quarta, 17. Passa na quinta, 18, quando também chegará ao streaming, nas plataformas Now, Vivo Play, Oi Play, Petra Belas Artes e Looke.

Tudo isso é muito simbólico. O filme, a estreia no cinema, o destino final nas plataformas que estão substituindo as salas nesse período de pandemia. Por conta do isolamento, Caco conversa com o Estadão pelo telefone. Lembra que Partida nasceu como um experimento e que, nesse sentido, o mais difícil foi o que antecedeu a gravação. Não havia patrocínio, a trupe seria ao mesmo de personagens e técnicos. Mas antes de tudo havia um sonho. “Sempre quis fazer uma viagem de carro ao Uruguai para passar o Ano-Novo com (o presidente) Pepe Mujica.

Havia o que, para mim, era uma lenda, que ele morava num sítio e recebia as pessoas. O Brasil estava naquela escalada de radicalização. (Jair) Bolsonaro detonava todo mundo. Nunca estivemos tão divididos nas redes sociais. Amigos e parentes rachados. Quando Georgette Fadel começou com aquele plano de se candidatar a presidente, comecei a pensar que seria a companheira de viagem ideal. Ela iria dirigindo o carro e eu captando com a câmera o pensamento político dela, porque a intenção era essa. A maioria, como se manifestava, estava confusa, então parecia necessário construir um pensamento político embasado. A gente estava discutindo de qualquer jeito. Se agredindo, ofendendo. A ideia inicial de Partida, o ponto de partida, era colocar uma ordem.”

No início era só uma curiosidade de Caco Ciocler pelo pensamento da amiga e atriz Georgette Fadel, mas aí começaram a pensar num filme e, se era para ser filme, precisava de outra câmera, de gente para cuidar do som. O carro ficou pequeno. “Não tínhamos patrocínio, nem nada para oferecer às pessoas. Cada um que se incorporava tinha a sua demanda, a sua história. O carro virou ônibus e o filme que não tinha roteiro começou a virar, de alguma forma, também a história dessa trupe, o que foi uma coisa muito bonita. E eu virei o diretor disso tudo.” Georgette continuava no centro, mas Caco, que já tinha experiência de direção – um curta e um longa -, sentiu que talvez não desse certo. “Todo mundo pensava muito igual. Era preciso alguém para expressar o outro lado.” Foi quando entrou em cena outro amigo, Léo Steinbruch.

“O Léo trouxe a dinâmica que a gente precisava. Georgette e ele brigavam feito cão e gato, mas a grande lição que a gente tirou do experimento pode parecer banal, mas foi que o ódio não constrói. Eles divergiam em tudo, mas convergiam no afeto. Desligava a câmera e, mesmo que continuassem brigando, se provocando, eram abraçados.” Georgette também está em casa, isolada. Estava com três projetos de espetáculos para este ano, todos travados pela covid-19. Um era com Caco – Língua Brasileira, de Felipe Hirsch, baseado na obra de Tom Zé, falado em 16 línguas. Outro, no qual assina o texto, Capô, é sobre três mulheres que vão ao fim do mundo atrás da nova utopia. E o terceiro, Cecília, que também escreveu, sobre uma mulher isolada num apartamento e que começa a se comunicar com os vizinhos por meio de rachaduras nas paredes. Apartamento, rachaduras. Parece metáfora do que estamos vivendo, mas só se fosse premonição. A ideia nasceu antes.

Quando Partida estreou na Mostra, Caco achou que o filme talvez tivesse ficado defasado. O Brasil parecia mais calmo, mas agora, em plena pandemia, “com esse desgoverno”, ele sente que ficou atual de novo. Georgette nunca teve esses vacilos. “Para mim, esse filme foi sempre representativo daquilo que a gente vivia e continua vivendo, agora pior, porque tudo que a gente temia aconteceu, e redobrado.” Está confinada no sítio.
Segue candidata a presidente? “Para mim, o importante agora é a formação de uma frente que nem precisa ser só de esquerda, uma frente democrática para permitir que esse País respire de novo, erradicando essa gente que não tem outra narrativa senão o ódio.” No filme, a trupe chega ao Uruguai, encontra o Mujica. “Foi uma coisa linda, ele é um homem doce.” E Caco: “É um sábio. Faz uma análise da situação do mundo que não apenas é válida, como ficou mais abrangente. Precisamos nos mobilizar para salvar o Brasil, o planeta.”

No ônibus, houve de tudo. Momentos de tédio, de tensão, de dúvida. E se nada desse certo? Um dia, depois da gravação de uma daquelas discussões intensas, Caco brincou com o amigo: “Como é que se sente como o vilão da nossa história?” E o Léo: “Que vilão, cara? Sou o heroizão”.

A peça de Felipe Hirsch deve estrear depois da pandemia, Caco está no ar na reprise da novela Novo Mundo. “Me chamaram para fazer um tipo de médico, mas o personagem mudou muito. Guardo a lembrança de que foi uma novela feliz, com uma equipe muito bacana. Vai continuar como a história de Dom Pedro II, com o Selton (Mello), mas daquele elenco sobram só o dono do hotel e a mulher, já velhinhos.” Sobre o “experimento”, diz: “Fiz o curta Trópico de Câncer e o longa Esse Viver Ninguém me Tira, que foi uma encomenda. Partida é meu primeiro longa autoral, e vejo que já tem muita ficção no jeito como a gente trabalhou. Dirigi e atuei na nova temporada da série Unidade Básica, estou à frente de um projeto para ajudar artistas carentes. Você não imagina a quantidade de artistas com dificuldades, coisa de fome, cara. Depois disso tudo, quero me aprofundar no cinema fazendo ficção.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Luiz Carlos Merten
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