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Ministério da Saúde impõe restrição ilegal para impedir que Médicos Cubanos voltem a trabalhar no Brasil

29/04/2020
Ministério da Saúde impõe restrição ilegal para impedir que Médicos Cubanos voltem a trabalhar no Brasil

“EU SOU MÉDICO CUBANO, tenho todos os requisitos e fiquei fora do edital”. Essa mensagem chegou ao e-mail da Organização Pan Americana da Saúde, a Opas, em 2 de abril. Carlos*, o remetente, buscava explicações para uma exigência ilegal do primeiro edital lançado pelo Ministério da Saúde para médicos intercambistas estrangeiros no governo Jair Bolsonaro.

Em meio à pandemia do coronavírus, com quase quatro mil mortes e 61.888 casos notificados oficialmente, o governo publicou no dia 26 de março um edital para contratar mais médicos para atuarem no país. Só que o chamado já veio com uma lista de pré-aprovados – e ela não incluiu os nomes de muitos dos médicos cubanos que já atuaram no programa Mais Médicos no Brasil. Desde que Cuba se retirou do programa, mais de mil deles permaneceram aqui e estavam esperando uma nova oportunidade para voltar a trabalhar.

Sem nenhuma justificativa legal que autorize isso, o novo edital já começou com uma lista de médicos “pré-aprovados” para participar. O sistema de inscrição não aceitou inscrições de quem não estava nessa lista.

“Trata-se de uma restrição ilegal. Além de prejudicar os profissionais, lesa a população de regiões carentes do país, que estão mais vulneráveis em função do coronavírus”, me disse o defensor público federal Wagner Wille Nascimento Vaz, da Regional de Direitos Humanos no Amapá e Pará.

Ele é autor de uma ação que pediu o fim da trava que impedia a participação de outros candidatos e a prorrogação do prazo para que os candidatos pudessem se organizar para participar. No estado, pelo menos 80 profissionais comprovadamente aptos a participar foram excluídos.

A justiça concedeu liminar favorável à defensoria, que pediu a mudança no edital e o aumento do prazo para inscrição. A orientação do defensor é que os médicos cubanos excluídos enviassem seus documentos para o Ministério da Saúde e cobrem para que sejam reincorporados.

“Quando a liminar saiu, comemoramos. Diante de uma pandemia mundial, é um escândalo o governo lançar um edital convocando médicos que fere os princípios de transparência da administração pública”, me disse a advogada Gabriella Machado, que representa um dos médicos impedidos ilegalmente de participar. O profissional, que pediu anonimato, está desempregado desde o fim do Mais Médicos.

O problema é que, até agora, o Ministério da Saúde não cumpriu a liminar, que passou a valer em 6 de abril. Além da infringir a justiça, o que acarreta a cobrança de uma multa diária, o silêncio do governo atrasa o fim do processo seletivo. Com isso, aumenta a demora para a convocação de médicos para cuidar de populações cujo atendimento está prejudicado em plena pandemia.

Ministério culpou a Opas, que desmentiu

Carlos* é um médico cubano que, junto com outros 8 mil, parou de atuar no país quando Cuba rompeu o acordo com a Opas, motivada pelas agressões e ameaças de Bolsonaro. A ruptura deixou o país com um apagão de médicos – os cubanos correspondiam à metade da força de trabalho do Mais Médicos, responsável por atuar em áreas remotas e de pouco interesse dos profissionais brasileiros. Ele serviu até o dia 13 de novembro de 2018 e, quando o acordo foi suspenso, decidiu ficar no país. Cerca de um quarto dos cubanos do programa, ou 2 mil médicos, fizeram o mesmo, esperando uma nova chance para trabalhar.

Bolsonaro prometeu não esvaziar o Mais Médicos e relançou o programa, rebatizado Médicos pelo Brasil. Segundo as exigências previstas na lei que instituiu o novo programa, assinada pelo próprio presidente, podem ser reincorporados médicos que estivessem em exercício no Mais Médicos no dia 13 de novembro de 2018, tivessem sido desligados por causa da ruptura do acordo e tivessem permanecido no Brasil. Por isso, quando o edital de convocação para o novo programa de médicos intercambistas foi publicado, Carlos e outros profissionais espalhados por todo o país acreditaram que, enfim, teriam uma chance. Não foi o que aconteceu.

Publicado com uma lista pronta de pré-selecionados, o edital excluiu pelo menos 1.100 médicos cubanos que estariam, em tese, aptos a concorrerem às vagas, segundo levantamento feito pelos médicos cubanos que se organizaram para mapear seus pares. Outro levantamento, de uma associação de médicos cubanos que ficaram no Brasil chamada Aspromed, diz que pelo menos dois mil vivem no país.

Organizados, os médicos começaram a pressionar e cobrar explicações do Ministério da Saúde sobre os critérios que nortearam a escolhar dos pré-aprovados no programa. Segundo o defensor Vaz, o governo afirmou que coube à Opas a elaboração da lista de pré-aprovados para o edital, mas a organização desmentiu.

Em um e-mail a um dos médicos ao qual o Intercept teve acesso, a Opas, além de negar a elaboração da lista, informou que “não enviou ao Ministério da Saúde informações destinadas à elaboração desse edital; nem recebeu solicitação de informações que fossem destinadas à elaboração desse edital”.

“A Opas não tem como acessar quem está regular ou não no Brasil. Essa informação é das instituições brasileiras, como a Polícia Federal. Alguns candidatos mandaram documentos para a Opas, provando estar regularizados, e ela respondeu dizendo que não tinha participado de lista alguma”, me disse Vaz.

Questionado, o Ministério da Saúde afirmou em nota que, à época do fim do Mais Médicos, foi solicitada à Opas uma lista contendo os profissionais que participavam do programa mas não fora repatriados. “Nesse sentido, caso o Judiciário entenda, liminarmente, ser necessário incluir determinado profissional, o Ministério da Saúde irá cumprir a determinação imposta, como vem fazendo até o momento”. Mas a pasta afirmou que se tratam de vagas novas criadas pelo programa, e não de vagas ociosas. Segundo o governo, os médicos devem chegar aos postos em maio – mas os profissionais com quem conversei ainda não conseguiram se inscrever.

Novembro de 2018: após ameaças de Jair Bolsonaro, o governo cubano retirou do Brasil mais de 8 mil médicos que participavam do Mais Médicos. Foto: Evaristo Sá/AFP via Getty Images

Médicos ociosos em plena pandemia

O Brasil tem um problema crônico de falta de profissionais de saúde em algumas regiões do país, especialmente no Norte e no Nordeste, além de em áreas remotas de vários estados, e convocar estrangeiros no programa Mais Médicos foi, desde 2003, uma maneira de contornar o apagão.

Mas, em 2018, a ruptura do acordo fez o Brasil perder mais da metade da força de trabalho do Mais Médicos, no qual também atuavam profissionais brasileiros e de outras nacionalidades, além dos cubanos. Dos cerca oito mil médicos cubanos, um quarto optou por seguir no Brasil.

A saída dos cubanos afetou gravemente o serviço público de saúde. Seis meses depois da ruptura do acordo, 42% das cidades brasileiras não haviam conseguido preencher as vagas do edital aberto no governo Bolsonaro. Em 139 cidades, a maioria no Nordeste, nenhuma vaga foi preenchida. Mesmo em São Paulo, maior e mais rica cidade do país, bairros periféricos ficaram sem médicos depois da saída dos estrangeiros.

Com a pandemia, a situação se agravou. Os profissionais de saúde, na linha de frente, sofrem com a falta de equipamentos e acabam se contaminando com a doença. Estima-se que eles correspondam a 20% do total de infectados. No Brasil, já são mais de oito mil afastados por covid-19, o que agrava o problema da falta de médicos.

Enquanto isso acontece, os cubanos que participaram do programa seguem impedidos de trabalhar.  “O Brasil está precisando de médicos, a gente tem uma lei aprovada para nos reincorporar e o ministério deixa fora mais de mil cubanos”, me escreveu Juan*, outro médico cubano com quem conversei.

“Bolsonaro falou que os direitos humanos (dos médicos cubanos) estavam sendo violados porque Cuba ficava com parte do nosso salário no acordo com a Opas. Mas a violação está acontecendo agora. Será que fomos enganados?”, me disse o médico cubano Julian*. Desde o fim do acordo com o país caribenho, em novembro de 2018, ele vive de subempregos na periferia da Grande São Paulo para garantir o sustento da família – a mulher e três crianças pequenas, que moram com ele no Brasil.

*Os nomes foram trocados para preservar o anonimato das fontes.