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João Marcello Bôscoli narra memórias doloridas ao lado da mãe em ‘Elis E Eu’

19/10/2019

João Marcello Bôscoli tinha 11 anos quando o mundo despencou. Era uma manhã, 19 de janeiro de 1982, e o telefone. Um repórter de rádio perguntava se era da residência da cantora Elis Regina e gostaria de confirmar se ela havia mesmo, conforme as primeiras notícias ventilavam, morrido. João achou que fosse trote e desligou. O que se passaria nas próximas horas seria o início de um pesadelo que levaria alguns dias para se dissipar.

Ainda mais sozinho que seus dois irmãos por parte de mãe, Maria Rita e Pedro, que foram morar com o pai, Cesar Camargo Mariano, João passou a viver de forma conturbada com o irmão de Elis, Rogério, com quem não se dava bem, e percebeu que muitas pessoas que estavam a seu lado até aquele dia estavam ali por interesses em tocar com Elis, ser gravado por Elis, ser visto ao lado de Elis, fazer parte da turma de Elis.

Depois de dar entrevistas para livros, assistir a documentários de TV, ajudar no preparo de um musical e dar consultoria para o filme que contou a história de sua mãe no cinema, João, pela primeira vez, escreve suas sensações dos fatos. Sua narrativa é conduzida, sobretudo, pelos sentimentos dos anos em esteve ao lado da mãe. Elis e Eu – 11 Anos, 6 Meses e 19 Dias com a Minha Mãe não é, contudo, um projeto biográfico de compromissos documentais. Traz um texto saboroso e direto, mas sem gracejos que poderiam tirar a tensão dos momentos duros nem a introspecção exagerada que poderia endurecer os ternos.

João vai falar pela primeira vez sobre o livro em uma entrevista aberta ao público para este jornalista na próxima terça (22), às 21h, na Casa de Francisca. Na segunda parte da noite, a cantora Vanessa Moreno vai interpretar músicas gravadas pela cantora.

Olhem para as crianças. “‘Desmoronar’ talvez seja a palavra mais precisa para descrever os dias seguintes”, começa o capítulo 2, Os Dias Seguintes. Assim que Elis se foi, a casa onde morava, na Rua Melo Alves, Jardins, São Paulo, começou a ser desmontada e as decisões de partilhas tomadas com muitos adultos dividindo entre itens pessoais como as roupas da mãe. E nada era levado a João. “O que imaginava ser algum tipo de amor por mim era, em parte significativa, apenas bajulação pra agradar e ficar mais perto da Elis”, escreve.

A certeza de que estava sozinho se deu aos poucos, mas um episódio, que poderia ser aparentemente corriqueiro, marcou fundo. Um amigo músico que não saía de sua casa (João não revela o nome, mas é alguém que tocava com Elis) passava com ele de carro em frente ao Playcenter, um antigo parque de diversões na zona norte de São Paulo, quando João perguntou: “Podíamos ir ao parque um dia desses, né?”. A resposta do músico o chocou: “Não levo nem meu filho ao parque, por que levaria você?”. Sua reação poderia ser apenas de frustração se aquela mesma pessoa não tivesse sido uma das mais amorosas enquanto a mãe estava viva.

O livro de João começa onde as biografias terminam para contar a parte mais triste da história de Elis. A morte precoce da maior cantora do País paralisou o Brasil por dias, com a mídia cobrindo o velório e o enterro e a polícia investigando para descobrir quem teria levado a cocaína que Elis misturou à bebida alcoólica na última noite. Uma caça às bruxas que ganhava a cobertura de revistas e jornais e comentários de todas as naturezas. O Brasil chorava a morte de Elis enquanto ninguém se lembrava das crianças.

Rita Lee escreve o prefácio. Ela recorda da grande amiga e do dia em que foi visitada na cadeia por Elis, que levava João Marcello bem pequeno pelo braço, corajosamente, para pedir sua liberdade. Rita, segundo a polícia da época, havia sido flagrada com drogas em uma busca em sua casa. “Lendo a solidão na qual aquele rapazinho mergulhou logo após a morte da artista percebo que, apesar de não vestir o papel da criança vítima, se eu tivesse sabido na época que ele iria perder o chão ao se ver praticamente sem família, eu o teria pegado para criar”, escreve Rita. “E eu teria ido”, diz João, ao jornal O Estado de S. Paulo. “Eu virei um problema, não era uma criança que se colocava no braço e levava para adoção. Era um adolescente. Fui mandado de volta para a escola com um pedido de bolsa de estudos anotada na minha caderneta.”

João conta que escreveu seu livro por duas razões. “Em primeiro lugar, por causa dos meus dois filhos. Eu queria deixar esses anos registrados para que soubessem como eu vivi essa história. E, depois, não há um só dia em que eu não ouça algo sobre minha mãe. Queria contar para essas pessoas o que vi.” João deixa nas entrelinhas o desconforto que ainda tem com a causa oficial da morte da mãe relacionada ao consumo de cocaína. A demora para sair o laudo médico, ele lembra, fez surgir uma série de teorias conspiratórias de que o resultado seria manipulado por pessoas que tinham ali a chance da vingança.

Elis, que já havia esbravejado contra os militares, tinha agora seu corpo disposto para ser aberto e analisado por eles. E o legista era nada menos que Harry Shibata, o mesmo que havia atestado o “enforcamento” do jornalista Wladimir Herzog nas dependências do Dops, em 1975. Não era só. O namorado de Elis à época era o advogado Samuel McDowell, o mesmo que havia desmascarado a farsa daquele laudo de Shibata. O roteiro da vingança parecia certo. João escreve que qualquer pedido de revisão da conclusão legista traria o mesmo resultado e que desistiu de pensar no assunto ao sentir “tudo engolido pelo choque, pela saudade e pelo carinho das pessoas com ela e comigo. Nada traria minha Mãe fisicamente de volta (ele escreve a palavra assim, com maiúscula).” O assunto, assim, fica nos ares.

João fala ainda do pai, Ronaldo, e da impossibilidade de viverem juntos, um homem que tomava uísque no café da manhã, diz ele. E faz elogios comoventes sobre Cesar Camargo Mariano, o outro pai que a vida lhe deu depois da partida de Elis. “É um dos meus maiores amores… Um herói, uma referência.” Mas Ronaldo também ganha palavras edificantes. “Amo seu chiaroscuro, seu texto encantador, seu charme intoxicante. Amo sua liberdade intelectual, seu humor cáustico.” João acaba por escrever mais uma importante parte da infinita história de Elis. Que venham as outras.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Julio Maria
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