Variedades

Nando Reis contorna até seu ateísmo para gravar músicas de Roberto Carlos

18/04/2019

Naqueles centímetros que separam o homem do violão que está em seu colo parece caber bem mais do que uma canção. Certeza, arrependimento, fé, descrença, abraço, repúdio, dor, lembrança, euforia, paixão. É apenas uma canção e não seria mais do que isso se não fosse o fato de Nando Reis ter vivido boa parte de seus 56 anos autobiografando-se nas letras do que canta. Não seria mais do que um álbum com músicas de Roberto Carlos se não fosse detalhes nem tão pequenos assim. Um Roberto cristão, por exemplo, colide com o que ainda pensa um ex-titã ateu até o último fio de cabelo ruivo.

Nando Reis canta 12 músicas conhecidas na voz de Roberto gravadas entre 1971 e 1994 no disco Não Sou Nenhum Roberto Mas às Vezes Chego Perto, que chega às plataformas digitais nesta sexta, 19, e terá shows de lançamento em São Paulo dias 15 e 16 de junho, no Credicard Hall.

Apesar dos arranjos sem a pretensão de rupturas pensados com ajuda do produtor e baterista Pupillo – o diretor artístico é Marcus Preto -, o espírito voz e violão permeia o projeto. Artistas que ficam para a história têm essa qualidade. É possível apanhar o violão, sentar-se na sala e tocá-los com a mesma emoção que se tem quando se está diante de 10 mil pessoas. Roberto funciona assim e Nando, desde que saiu dos Titãs, tem um caso de amor com as seis cordas de aço.

Alguns Robertos estão ali, mas o que predomina é o cantor pós-Jovem Guarda que volta do Festival de Sanremo, na Itália, como o gigante romântico depois de vencê-lo, em 1968, com Canzone Per Te. Nada do Roberto do iê-iê-iê, quase nada do soulman de Não Vou Ficar. Nando olha para as canções de amor.

Alô é de 1994, época geralmente desprezada por quem pensa em gravar Roberto. A original é datada, com teclados demais que desvalorizam a própria melodia, um excesso de estúdio que sugou Roberto por mais de uma década. Nando troca os teclados por sopros e faz a canção sair da poluição dos anos 90 para ser colocada na secura dos 70. É o pensamento dessa década que vai nortear o álbum.

A história começa em uma viagem de 2016. Nando segue de férias com a mulher Vânia para um sítio da família no interior de São Paulo, com o violão e álbuns de Roberto na bagagem. Ainda sem pensar em disco, cantou de coração desarmado O Portão, Detalhes, De Tanto Amor, Amada Amante. Quando veio Você em Minha Vida, pequenas estranhezas de um acorde de ré com sétima e nona o pegou em meio a uma canção tão simples, de notas tão naturais. Nando então parou para observá-la naquele primeiro ato que faz com que a música de alguém comece a ser sua também. Um fenômeno recorrente e impensável pelo próprio Roberto. O que faz sua música viver por tanto tempo não é a adoração dos fãs à sua pessoa, mas a capacidade que sua obra tem de pertencer a qualquer um.

Sem pensar com a mesma poesia que canta, Roberto disse não a dois pedidos de Nando: De Tanto Amor e Detalhes. Havia um sentido de caráter pessoal para que o músico quisesse a segunda. Apesar da letra melancólica, foi com ela que Nando se casou com Vânia. “Não grave não, ela é muito triste”, disse Roberto, tentando demovê-lo da ideia. Mas a insistência fez Roberto liberá-la. A segunda negativa foi inegociável. “Acho que ele disse não porque se trata de um patrimônio de seu repertório”, diz Nando sobre Detalhes. “A decisão foi sábia e confesso que me deixou com um certo alívio. Não sei como iria fazer um arranjo para essa canção.” Mais do que isso: “Vou adotar o mesmo pra mim. Ninguém mais grava o Segundo Sol”, disse, deixando o benefício da dúvida em seu riso.

Nando não deve ter falado detalhes sobre as outras canções que queria gravar.
Ou será que Roberto teria mesmo liberado Nossa Senhora, sua mais veemente entrega católica feita em 1993, no auge de sua devoção, se soubesse o que Nando faria com versos como: “Nossa Senhora me dê a mão / Cuida do meu coração / Da minha vida, do meu destino / Do meu caminho / Cuida de mim”? É bom lembrar que Nando tem no currículo a autoria de Igreja, a mais veemente entrega anticristã feita por uma banda de rock e lançada pelos Titãs em 1986, no álbum Cabeça Dinossauro: “Eu não gosto de padre / Eu não gosto de madre / Eu não gosto de frei / Eu não gosto de bispo / Eu não gosto de Cristo / Eu não digo amém / Eu não monto presépio / Eu não gosto do vigário / Nem da missa das seis / Eu não gosto do terço / Eu não gosto do berço / De Jesus de Belém”.

A saída pode não ser muito bem compreendida pelos cristãos que têm essa canção como um dos hinos em suas missas, e é recomendável que não se pergunte a Roberto o que ele achou do resultado.

Nando simplesmente manteve o acompanhamento, converteu o ritmo para valsa alterando seu compasso binário para ternário e trocou toda a letra por algo que pode ser interpretado perigosamente como deboche: um “na na na” do começo ao fim. “Não é uma negação à letra original, nem crítica nem desdém”, ele explica. “Mas o reconhecimento de minha impossibilidade em soar genuíno cantando essa letra.” Nando diz ter hoje, aos 56 anos, as mesmas não convicções sobre religião que tinha aos 23, quando fez Igreja. “Sou ateu, não sou devoto de Nossa Senhora, por isso preferi fazer assim, dar ênfase à melodia.”

A fase cristã de Roberto volta em duas outras canções, A Guerra dos Meninos e Todos Estão Surdos. A primeira, de 1980, teve uma solução declamatória feita por Jorge Mautner, que narra o aparecimento de Jesus Cristo como a “luz em forma de menino, que uma canção me ensinou”. E vem a voz de Nando a cantar apenas, de novo, o “na na na na”. “A força dessa música está na guerra entre o bem e o mal, com seguidores que vão atrás de seu mestre, algo dramático e épico.”

Uma incongruência mais visível parece surgir em Todos Estão Surdos. Talvez pela força da versão que fez, Nando, que não canta para Nossa Senhora, canta aqui a letra que se refere diretamente ao filho de Deus sem pronunciar seu nome. “Tanta gente se esqueceu / Que a verdade não mudou / Quando a paz foi ensinada / Pouca gente escutou / Meu amigo volte logo / Venha ensinar meu povo / O amor é importante / Vem dizer tudo de novo.” O meu amigo da letra, fica claro na canção que Roberto fez com Erasmo em 1971, é o próprio Jesus. Um passo para a conversão? “Eu não creio, mas posso ver a beleza divina de quem crê em Deus em uma canção.”

Uma espécie de acerto de contas com o passado é feito em outro momento. Ronaldo Bôscoli, produtor, compositor e jornalista morto em 1994, ex-marido de Elis Regina e pai do produtor João Marcello Bôscoli, entrou para a lista de alguns dos piores seres humanos que habitaram a Terra na visão de Nando Reis. Nome a nome, os Titãs destilavam sua vingança na música Nome aos Bois, do disco Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, de 1987. “Garrastazu, Stalin, Erasmo Dias, Franco, Lindomar Castilho, Nixon, Delfim, Ronaldo Bôscoli, Baby Doc, Papa Doc, Mengele, Doca Street, Rockefeller, Afanásio, Dulcídio Wanderley Boschilla, Pinochet, Gil Gomes, Reverendo Moon, Jim Jones, General Custer, Flávio Cavalcante, Adolf Hitler, Borba Gato…”

Nando contextualiza o que o fez colocar Bôscoli na mesma lista em que aparecem Hitler e Stalin. Na época da canção, no final dos anos 80, os Titãs iam fazer uma apresentação na hoje extinta casa de shows Canecão, no Rio, e o jornalista escreveu um artigo dizendo que o rock não deveria ser aceito em um templo da música brasileira, como alguns consideravam aquele espaço. “Eu reconheço que foi um exagero incluir Bôscoli naquela lista.” Seu ato involuntário de redenção foi gravar agora Procura-se, do álbum de Roberto de 1980, sem saber que o cantor assinava a parceria com Ronaldo Bôscoli. Fica como um pedido de desculpas.

A política ganha a mesma pergunta comparativa que foi feita à fé. Quais nomes estariam em um Nome aos Bois parte 2? “Não farei essa música, mas se fosse fazê-la colocaria Jair Bolsonaro. Suas posições, como a que teve sobre o homem morto com 80 tiros dados pelo Exército no Rio, é deplorável e fere o respeito ao ser humano.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Julio Maria
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