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Os cem anos do assassinato de Delmiro Gouveia

10/10/2017
Os cem anos do assassinato de Delmiro Gouveia
Delmiro Gouveia, ainda jovem em Pernambuco

Delmiro Gouveia, ainda jovem em Pernambuco

(LISBOA/POR) – O sertão nordestino historicamente foi caracterizado pela curta ou simplesmente, inexistente estação de chuvas. As secas cíclicas e suas consequências negativas são suficientes para que o sertão seja naturalizado como seco. Na verdade sempre faltou uma política capaz de criar sistemas de convivência do sertanejo com a escassez de chuvas. Até o fim do Arraial de Canudos e a morte de Antônio Conselheiro não houve, por parte do Estado, uma política voltada para a economia e a infra-estrutura no sertão. Os sertanejos viviam jogados a própria sorte sem que o Estado brasileiro se fizesse presente nessa região do país.

A Guerra de Canudos teve seu fim em 5 de outubro de 1897, deixando um saldo de cinco mil sertanejos mortos pelo Exercito republicano.

Cinco anos depois – após o massacre de Canudos há aproximadamente 200 km de distância tem inicio um processo de industrialização no sertão alagoano com a chegada à região do comerciante Delmiro Gouveia, trazido por circunstâncias de uma briga deste com as oligarquias políticas e econômicas pernambucanas chefiadas pelo Vice-presidente da República Francisco de Assis Rosa e Silva.

Por indicação do amigo Governador de Alagoas Euclides Vieira Malta, Delmiro Gouveia vai se instalar no sertão alagoano, município de Água Branca, chegando em novembro de 1902. Inicialmente alojado na ‘Fazenda Cobra’ do Coronel Ulisses Luna, Delmiro Gouveia resolve retomar suas atividades comerciais de compra e venda de peles, matéria prima que dera a ele o título de “Rei das Peles”. Adquire uma propriedade e vai morar próximo a estação de trem da Pedra, e lá retoma o controle dessa atividade comercial dominando nos sertões do Nordeste a compra, tratamento e exportação de couros de animais para os Estados Unidos. Refeito a sua fortuna que perdeu em consequência de suas desavenças com políticos pernambucanos, resolve permanecer definitivamente no sertão alagoano e transforma a Pedra no maior centro de comércio de peles dos sertões do Nordeste e com os lucros das peles investe em outros empreendimentos.

Delmiro Gouveia em sua fazenda Pedra, nos idos dos anos 10, do século passado

Delmiro Gouveia em sua fazenda Pedra, nos idos dos anos 10, do século passado

Com apoio do amigo-Governador Euclides Malta, Delmiro consegue concessão para explorar a cachoeira de Paulo Afonso. Adquire do Coronel Ulisses Luna as terras às margens alagoana da Cachoeira de Paulo Afonso e contrata técnicos para elaborar projeto para instalação de usina hidroelétrica. Compra equipamentos e em 1911 inicia a construção da primeira Usina Hidroelétrica do Nordeste – Usina Angiquinho. Não logrando êxito no propósito de vender energia para o Estado de Pernambuco resolve ampliar os seus planos e monta em paralelo um projeto para instalação de uma indústria – A Fábrica de Linhas da Pedra. Em 1912 começa a construir um Núcleo Fabril com 258 casas e a fábrica de linhas de coser. Em 1913 inaugura Angiquinho e em 05 de junho de 1914 inaugura no sertão a primeira fábrica de linhas da América Latina – Linhas marca Estrela – abastecida pela energia elétrica da usina Angiquinho. Pedra teve energia elétrica antes que o Recife e passa a ser visitada por jornalistas, empresários, líderes políticos, religiosos e gente de todo o mundo em busca de conhecer a “revolução industrial sertaneja”, liderada por Delmiro Gouveia.

 “Naquela noite de 10 de outubro de 1917, o passado matava o futuro”, (Frederico Pernambucano de Melo)

O Núcleo fabril sertanejo passou a fazer parte do discurso de setores da intelectualidade brasileiro como uma “Resposta a Canudos”, usando as palavras de Assis Chateaubriand um dos entusiastas do industrial sertanejo. Chateaubriand visitou por duas vezes a Pedra e foi hóspede de Delmiro. Da última visita escreve suas impressões em um artigo no Diário de Pernambuco intitulado “Uma Resposta a Canudos”. Para este jornalista o sertanejo da Pedra era “civilizado” e estava incorporado a “modernidade” pelo trabalho, graças a ousadia de Delmiro Gouveia.

Nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, o sertão se transformou no palco para a literatura em busca do lugar nacional. Diante da seca, barbárie e mestiçagem o sertão era o grande problema da nação. Era o espaço sem lei, espaço de doenças, sem valores estabelecidos e de uma população considerada preguiçosa, de vagabundos e violentos.

O sertanejo da Pedra passou a ser citado como exemplo de “civilidade” em contraponto aos sertanejos de Canudos. Esta concepção tinha como inspiração o pensamento e a cultura europeia como modelo ideal e de civilidade.

O sertanejo de Canudos e de Pedra viviam no sertão com as mesmas características políticas, econômicas e sociais. Foram experiências com perspectivas diferentes, mas Pedra foi transformada em espaço de modernização e de civilidade.

Contudo os visitantes do Núcleo fabril da Pedra foram divulgadores da experiência sertaneja de industrialização e de certa forma ajudaram, intencionalmente ou não a construção de uma imagem oposta a que predominava até então. O sertão e o sertanejo de Pedra eram símbolos de trabalho e civilidade. Para Plínio Cavalcante, Oliveira Lima e Assis Chateaubriand isso só foi possível graças e iniciativa de Delmiro Gouveia que liderou uma revolução industrial em pleno sertão.

Uma das últimas fotografias de Delmiro Gouveia em sua fazenda em Alagoas

Uma das últimas fotografias de Delmiro Gouveia em sua fazenda em Alagoas

Para grande número de pesquisadores, historiadores e intelectuais essa foi uma das principais contribuições de Delmiro ao povo do sertão, reconstruir a imagem do sertão e do sertanejo para o Brasil e o mundo  Pedra enquanto administrada por Delmiro Gouveia tinha aproximadamente 2.500 operários, dos quais 1.500 trabalhando na fábrica da Pedra e os demais no plantio de algodão, comércio e tratamento de peles, e manutenção da usina Angiquinho ou nas estradas abertas por Delmiro ligando Pedra a outras cidades como Garanhuns, Quebrangulo, Paulo Afonso, Piranhas, num total de 520 Km de estradas abertas.

As realizações de Delmiro chamaram a atenção de muitos intelectuais a exemplo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Plínio Cavalcanti, Oliveira Lima, Octávio Brandão, Jorge de Lima e Pedro Motta Lima.

A morte de Delmiro Gouveia ainda é cercada de muitos mistérios e ainda hoje não esta esclarecida. No processo crime da morte de Delmiro foram acusados de autoria material o Coronel José Rodrigues de Lima (Chefe político do município de Piranhas) e José Gomes de Lima (Coletor no município de Jatobá/Tacaratu/PE), mas, nunca foram a julgamento, apenas os autores materiais José Inácio Pia, Roséo Moraes e Antônio Félix do Nascimento, foram condenados e presos. Na década de 1980 em revisão criminal realizada pelo Tribunal de Justiça de Alagoas por iniciativa do Historiador Moacir Medeiros de Sant´Ana e dos advogados Antônio Aleixo e Antônio Sapucaia alguns desses tiveram penas revistas pela justiça alagoana e decretadas suas inocências.

Neste dia 10 de outubro de deste ano completa 100 anos do assassinato de Delmiro Gouveia. Delmiro Gouveia ainda é um personagem que nos leva e nos inspira a refletir sobre o sertão e o sertanejo. E a sua morte foi muito bem definida pelo Historiador Frederico Pernambucano de Melo que disse que: “Naquela noite de 10 de outubro de 1917, o passado matava o futuro”. Se Graciliano Ramos é o símbolo da nossa literatura, Lampião e Maria Bonita do Cangaço, Luiz Gonzaga da música Nordestina, Padre Ibiapina, Cícero Romão Batista e Antônio Conselheiro símbolos do catolicismo popular, Delmiro Gouveia é o da industrialização do sertão.