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Melhorando as cidades. A reversão de equívocos históricos

04/01/2016
Melhorando as cidades. A reversão de equívocos históricos
Ministro da Cultura, Juca Ferreira (Foto: Oliver  Kornblihtt)

Ministro da Cultura, Juca Ferreira (Foto: Oliver Kornblihtt)

Neste início de século, após décadas de equívocos de toda sorte, nossas cidades tornaram-se inóspitas, sinônimos de inchaços, de desigualdades, de baixa qualidade de vida, violência, gigantescos déficits habitacionais e de infraestrutura, de degradação do meio ambiente urbano, poluição de todo tipo e graves problemas de mobilidade. É triste, mas nossos rios urbanos viraram esgotos.
A ausência de uma reforma agrária que criasse condições de vida decente para as populações rurais associou-se a um projeto de desenvolvimento econômico concentrado em algumas regiões metropolitanas, baseado no estímulo ao consumo de bens duráveis e concentrando nas cidades a oferta de serviços básicos de saúde, educação e programas de habitação.
Tudo isto estimulou no brasil um vertiginoso processo de urbanização, principalmente a partir do golpe militar de 1964. A partir daí, a terra urbana virou uma mercadoria muito mais valiosa e a especulação imobiliária passou a reinar em nossas cidades. Em 1960, mais da metade da população brasileira estava vivendo no meio rural; dez anos depois, a equação se inverteu. Em pouco mais de 50 anos mais de 90% de nossa população passou a habitar o meio urbano.
Nossas ruas e espaços públicos estão deixando de ser espaços de sociabilidade, transformando-se em meros canais de tráfego; quando já não são, estão se tornando lugares perigosos, frequentemente feios e desagradáveis, que, hoje em dia, tentamos transpor o mais rapidamente possível. Só nos sentimos seguros quando abstraímos a cidade em nossas casas, ou em espaços artificiais, como os shopping centers, ou na virtualidade do ciber espaço de nossos celulares, computadores e televisões.
Urge um pensamento crítico sobre o caos instalado na urbe. Devolver a cidade ao cidadão, este é um dos nossos maiores desafios, devolver às nossas cidades a sua função de lugar que se organiza valorizando formas democráticas de convivência.
As cidades, em última instância, refletem estruturas sociais e opções culturais de uma sociedade. As políticas urbanas no brasil, tradicionalmente, têm secundarizado a dimensão cultural em seus modelos de desenvolvimento. Não temos como delinear outro imaginário urbano sem construir ao mesmo tempo um novo tecido de significados, de valores, de projetos coletivos em que todos os habitantes da urbes possam se reconhecer como agentes e parceiros.

Referência
Todos sabemos que as cidades americanas têm características bem particulares, em muitos aspectos bem distintas das cidades europeias que quase sempre tomamos como referência de vida urbana. Muito diferenciadas também são as urbanidades organizadas pelos povos anglo-saxões, pelos hispânicos e pelos lusitanos.
Em “Raízes do Brasil”, um clássico na interpretação de nosso país, Sérgio Buarque de Holanda fortalece suas ideias sobre características culturais definidoras do que veio a ser a ocupação do espaço urbano segundo as colonizações portuguesa e espanhola.
Os portugueses, para Sérgio Buarque, teriam se pautado por um estilo semeador, aquele que ocupa o território jogando sementes ao léu, enquanto o modelo espanhol se aproximaria de um tipo que ele chama de ladrilhador, aquele que organiza os espaços com régua, ocupando o território com “método” e “racionalidade”.
Os espaços urbanos não são só resultado da adaptação ao meio físico, são produto da cultura de um povo, reproduzem uma maneira de lidar com a vida material e intelectual ao longo de sua história.
Os portugueses não foram relaxados, procuraram se apropriar do relevo natural do solo e da geografia. Seguir a tradição de se posicionar no topo para não ser facilmente surpreendido pelo inimigo parecia aos portugueses algo mais sensato a considerar. É grande o número de cidades portuguesas construídas em terrenos acidentados. Estar no topo os posicionava melhor para enxergar o inimigos e aproximando desde longe. Eis aí uma outra lógica.
Fiz esse comentário para destacar que há diferentes maneiras de lidar com a urbe, no tempo e no espaço. As cidades são sempre o reflexo contraditório e conflituoso da cultura de um povo.
Assim também o é seu modelo de desenvolvimento. São produtos de muitas determinações e de circunstâncias históricas, políticas, sociais, econômicas e ambientais diversas, que interagem de uma maneira singular dando a cada centro urbano uma personalidade própria, inconfundível.
Temos de ter em mente que uma cidade é algo em permanente transformação. Sempre teremos que pensar a cidade do futuro a partir da cidade do presente, cujos erros e acertos não podemos ignorar.
Em muitos aspectos, as nossas cidades acumulam equívocos e distorções históricas. E esse deve ser o ponto de partida para o nosso enfoque mais urgente, a fim de que tais erros sejam neutralizados ou corrigidos. Muitos deles são mesmo de origem cultural, dizem respeito aos nossos valores, à nossa atitude pessoal, às nossas emoções, aos nossos sentimentos de competição ou de afetividade, aos nossos projetos de vida na família e no trabalho.
Não se pode negar que avançamos em alguns pontos. Aos poucos estamos forjando um novo entendimento a respeito das relações urbanas. Passamos por um processo de requalificação dos Planos Diretores das cidades de grande e médio porte e os ampliamos como ferramenta de gestão urbana para as pequenas cidades brasileiras. Já possuímos um Plano nacional de saneamento.
A aprovação do Estatuto das Cidades e a criação do Ministério das Cidades nos deu a impressão de que tínhamos atingido um ponto de mutação e que os temas urbanos estariam se tornando a pauta central da jovem democracia brasileira.
O Estado brasileiro dos últimos anos distribuiu renda, universalizou o acesso a muitas políticas públicas, realizou grandes investimentos em infraestrutura. Mas a verdade é que tais ações não resultaram numa reconfiguração democrática do nosso território.
Cidadania
Temos que reconhecer que ainda mantemos os velhos e mesmos modos de produção e reprodução do espaço urbano, apesar da consciência de cidadania e de direitos expressos por diversos movimentos sociais, por intelectuais e alguns políticos.
A política cultural que reorganiza a relação com a periferia não só concomitantemente constrói outra cultura política; ela já é, em si, resultado de uma outra visão sobre a ocupação das ruas e dos espaços públicos, de uma política voltada a superar modelos excludentes.
Movimentos sociais urbanos, em todo o brasil, principalmente nas grandes cidades, incomodados com este estado de coisas, vêm, nos últimos anos, se articulando em torno de agendas associadas ao direito à cidade. Em nome de um novo traçado urbano, que não seja produto da especulação imobiliária.
O que os une é sobretudo um desejo coletivo de remodelar os processos de urbanização em busca de mais qualidade de vida, acessível a todos, representada por melhores condições de acesso aos espaços públicos, à mobilidade urbana, à energia, moradia, saúde e educação.
Aos poucos estamos formando um novo entendimento a respeito da relação entre cidade, cultura e democracia. Sabemos que não há salvação para o planeta sem outra mentalidade e comportamento.
O engajamento cidadão pode vir a gerar o esperado ponto de mutação deste estado de coisas no meio ambiente urbano.
Somente a partir da participação da sociedade no planejamento e nas decisões sobre o fazer urbano poderemos ter esperança de ver nascer uma outra democracia, que estimule uma cidadania propositiva, impregnada de um sentimento de pertencimento, fruto de outra relação com a cidade.
 Está explicito nesses movimentos que mencionamos o desejo coletivo de barrar a degradação das nossas cidades. O que neles mais se nota é um genuíno desejo de influir nos destinos do lugar onde se vive. Eles são a sociedade assumindo protagonismo sobre seu território.
Não se pode negar que avançamos em alguns pontos. Aos poucos estamos forjando um novo entendimento a respeito das relações urbanas
Somente a partir da participação da sociedade no planejamento e nas decisões sobre o fazer urbano poderemos ter esperança de ver nascer uma outra democracia