Geral

“Campos do sexo” em Moçambique preparam crianças para o casamento

14/07/2015
“Campos do sexo” em Moçambique preparam crianças para o casamento

 

Reprodução/Youtube Até 2020, mais de 140 milhões de jovens com menos de 18 anos deverão se casar em todo o mundo

Reprodução/Youtube
Até 2020, mais de 140 milhões de jovens com menos de 18 anos deverão se casar em todo o mundo

Crianças a partir de 8 anos são enviadas a “campos do sexo” em Moçambique e na Zâmbia para aprender detalhes sobre o casamento e, no caso das meninas, a satisfazer seus maridos. A informação é da ONG Child Not Bride, entidade formada por mais de 450 organizações de vários países comprometidas em acabar com o casamento infantil.
Em conversa com o iG, a ativista Maryam Mohsin explica que nesses locais, meninos e meninas passam por “cerimônias de iniciação” em que recebem aulas de cultura e tradições africanas, mas também instruções práticas sobre o sexo que exigem a inserção de objetos no interior do corpo feminino e até castigos físicos, quando as crianças e os jovens não executam bem uma tarefa.
“Essas cerimônias se concentram principalmente na região central moçambiquenha, como na província de Zamzebia, e no norte da Zâmbia, e apesar de as aulas também terem o objetivo de preparar jovens para a vida adulta, têm gerado preocupação pela natureza fortemente sexual de suas cerimônias”, afirma.
Por causa desse tipo de tradição, tanto Moçambique quanto a Zâmbia estão em posições preocupantes no ranking do Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, para as nações com maior número de casamentos infantis do mundo. Em Moçambique, 56% das meninas se casam com menos de 18 anos, o que coloca o país em quinto lugar entre os dez com os índices mais elevados. Já a Zâmbia ocupa a 15ª maior taxa do planeta, com 42%.
Se os dados se mantiverem, até 2020 mais de 140 milhões de jovens com menos de 18 anos deverão se casar em todo o mundo – 50 milhões delas com idade inferior a 15 anos – estima o UNFPA, Fundo de População das Nações Unidas. “O casamento infantil é uma violação terrível dos direitos humanos e rouba educação, saúde e perspectivas em longo prazo desses jovens”, diz Babatunde Osotimehin, diretor executivo do UNFPA.
Ao analisar os dados, o professor de antropologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Claudio Bertolli Filho sugere que como a noção de infância varia de acordo com os países, quase nunca levam em conta a qualidade de vida dos noivos. “A noção de criança como entendemos não é universal. Problemas como a baixa expectativa de vida, aliados a alianças familiares e ao pagamento do dote, vêm antes da qualidade de vida infantil”, avalia.

Treinando para o casamento

Oficialmente, os organizadores desses campos afirmam que jovens na puberdade aprendem sobre higiene, tarefas domésticas e, no caso da mulher, como ela deve se portar em sociedade e diante da família durante os cerca de 15 dias que passam no local. Mas, segundo Maryam Mohsin, os ritos de iniciação incentivam o casamento precoce, já que crianças e adultos são levados a crer que, ao saírem dessas cerimônias de iniciação, estão prontos para se envolver em atividades sexuais.
“Em alguns casos, a economia também desempenha um papel importante nessas uniões, já que os pais veem nesses casamentos uma maneira de resolver seus problemas financeiros”, diz ela.
“Em Moçambique, por exemplo, as maiores taxas de casamentos infantis se concentram nas províncias onde os ritos de iniciação predominam.”
É também nessas áreas que há um número significativo de jovens mães com sérios problemas de saúde, como fístulas obstétricas, devido a complicações no parto. Claudio Bertolli lembra também que grande parte das mulheres menores de idade acabam sendo escravizadas, abusadas sexualmente e são submetidas a toda e qualquer exigência do marido. “Além de os maridos se sentirem donos das mulheres, há relatos de parentes que abusam das meninas e também se sentem donos delas, fazendo das menores suas escravas.”

Prática ilegal

Os locais que praticam a iniciação sexual são considerados ilegais. Ainda assim, como a prática é uma tradição em muitos vilarejos, os “campos do sexo” acabam sendo mantidos e incentivados pelas próprias famílias das crianças.
“A maioria dos meninos e meninas são encorajados e pressionados por suas próprias comunidades a participarem das cerimônias de iniciação”, explica.
Para acabar com a prática, o Unicef, em parceria com ONGs como a Child not Bride, tem resgatado crianças que são deixadas nesses locais por seus pais. Mas Maryam acredita que acabar com esse processo vai demorar, “uma vez que exige mudança na mentalidade” de vários setores sociais, como a polícia e os líderes comunitários.
“Eles precisam sair do ‘estado de negação’ e reconhecer que o fim dessa prática vai contribuir para a eliminação do casamento de crianças em Moçambique”.