Variedades

Juliette Binoche fala de diretores, poesia, perdão

02/12/2019

Juliette Binoche chegou no fim da tarde de sexta-feira, 29, no Reserva Cultural de Niterói, no Estado do Rio. Estava deslumbrante, num preto básico realçado por joias e pelo vermelho do batom. Concedeu entrevistas, fez uma live para o Estadão. Ela veio ao Brasil para ser a madrinha da festa de 30 anos da Imovision. Renata de Almeida, da Mostra de São Paulo, e Ilda Santiago, do Festival do Rio, subiram ao palco da Sala Nelson Pereira dos Santos, em homenagem ao grande cineasta, para saudar Jean-Thomas Bernardini e dizer que, sem ele – e a Imovision -, o cinema independente e autoral não teria tido tanto desenvolvimento no Brasil, nas últimas décadas. Juliette Binoche veio num bate-volta. Chegou na manhã de sexta, 29, regressou no domingo, 1º, para Paris. Três ou quatro coisas que ela teve tempo de dizer.

Sobre a fama de difícil de Krszystof Kieslowski: “Mas de onde vem isso? Como se criou essa lenda? Kieslowski fazia filmes duros, críticos, intimistas, pungentes, mas pessoalmente era um homem encantador. Sabia onde colocar a câmera, tinha uma relação de muita proximidade e entendimento com seu diretor de fotografia. Apesar do tema, A Liberdade É Azul (primeiro filme da chamada Trilogia das Cores, que inclui também A Igualdade é Branca e A Fraternidade É Vermelha) permanece na minha memória como uma das filmagens mais leves de que participei. Ríamos muito, ele contava histórias. Havia um clima de entendimento e felicidade. Pura alegria.”

Sobre a antepassada brasileira, nos anos 1830. “Sempre fantasiei muito a história de que haveria Binoches negros no Brasil. Meu tatatataravô era branco, francês e fez sexo com sua escrava, com quem teve filhos, nos anos 1830, e criando uma descendência que levou para a França, onde terminou por se dispersar. Meu sangue brasileiro é negro e gostaria de localizar esses Binoches, se existissem, para pedir perdão. Minha antepassada não tinha escolha. Não sei que vida tiveram, mas ele usou seu direito de senhor. Sempre achei que tinha uma dívida. Queria pedir perdão, porque nenhuma pessoa deveria ser usada. Todos temos direito a nossas escolhas, à dignidade do corpo, do trabalho. A vida pode ser muito injusta e cabe a nós impedir que isso se perpetue.”

Sobre o colaboracionismo dos franceses (com os nazistas) durante o regime de Vichy, na 2ª Grande Guerra. “Nós, franceses, lidamos muito mal com nosso passado. Houve resistência na guerra, mas muita gente, sim, colaborou. Restou uma herança que permanece no racismo, no apoio de parte do eleitorado à direita representada por Marine Le Pen. Mas, na verdade, não é só o colaboracionismo. Napoleão segue endeusado na historiografia oficial, mas fez coisas terríveis nas campanhas do Egito e da Espanha. A França escravizou, torturou e matou na Argélia, na África negra e durante muito tempo esses temas foram tabu. Deveríamos nos desculpar por isso.”

Sobre dirigir. “Há muita parceria, muita intimidade entre atores e diretores. Ao discutir o papel, a cena, há uma troca muito grande e a gente termina por interferir na mise-en-scène. Isso acontece muito, e os grandes autores com quem trabalhei – e que a propósito não eram tão grandes assim, tinham o talhe mediano (risos) – foram muitas vezes receptivos às sugestões, e então posso dizer que já dirigi, ou codirigi. Mas tenho vontade, sim. Existem histórias muito íntimas que só eu poderia contar. Tenho alguma coisa escrita que gostaria de filmar. Amo a pintura, todas as artes visuais, então acho que teria prazer nisso. Mas teria de parar, focar. Ficar dois ou três meses só pensando no meu filme. Tenho uma agenda lotada, gosto do que faço e agora não tenho tempo. Talvez um dia…”

Sobre escrever poesia, e cantar. “Um amigo pianista me estimulou a fazermos um recital, eu dizendo as letras de Barbara (icônica cantora e compositora francesa). Gostei da experiência. Gosto de cantar, mas são coisas delicadas, letras poéticas que remetem a estados d’alma, a coisas íntimas. A poesia é a mesma coisa. Não creio que exista experiência mais íntima do ser humano do que expressar-se por meio da poesia. Vem de dentro, pelo menos é assim comigo. Não acho que faça poesia. A gente não faz. Vem, flui através de nós. De vez em quando, essas coisas brotam dentro de mim, mas não sou poeta, não vou fazer sombra a Rimbaud, ele pode descansar (risos). Mas é gratificante quando brota. Exercitar a sensibilidade, nesse mundo que pode ser tão injusto e cruel.”

Autor: Luiz Carlos Merten
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