Variedades

Um mundo sem Beatles

25/08/2019

As luzes do planeta se apagam por 12 segundos e o único não afetado é o jovem cantor e compositor de rua Jack Malik. Algo se passa na memória coletiva do mundo e, com exceção a Malik, os Beatles, de repente, nunca existiram. Seus álbuns nunca foram gravados, ninguém nunca os ouviu e uma rápida busca no Google feita por um Malik aterrorizado só mostra como significado aproximado “Beetle” igual a Fusca. Ao digitar John e Paul, aparece a imagem do papa João Paulo II. Sobre essa premissa irresistível criada por Richard Curtis, o filme “Yesterday”, com direção de Danny Boyle e estreia marcada para a próxima quinta, 29, nada de braçadas nas cenas hilárias e corrosivas à indústria pop que se formaria justamente graças aos Beatles.

Um mundo sem Beatles. A história de Curtis lança um contexto tão possível, se Paul e John tivessem brigado feio em 1962, por exemplo, quanto inimaginável. Ninguém havia parado para fazer a pergunta simplesmente porque a humanidade pop não tem os Beatles como uma banda, mas como uma presença, um sentimento. A questão só é respondida diretamente no filme uma vez, em uma cena comovente apesar da aparente obviedade: “Seria um mundo muito pior”. Mas o que seria pior? Que mundo seria esse? A partir do momento em que lançasse o álbum Please Please Me, em 22 de março de 1962, a banda faria as luzes do planeta se apagar por exatos 32 minutos e 45 segundos para, assim que reacendessem, tudo o que havia antes se tornasse menor.

A música pop classe média jovem brasileira tinha um nome desde 1959, quando o império ainda estava nas mãos de Elvis Presley: bossa nova. Mesmo sendo um tornado com alto poder de destruição, deixando Frank Sinatra deprimido, Elvis não incomodava outros gêneros por atuar em um cenário geograficamente delimitado. Seu rock and roll de três acordes até ajudava o discurso supremacista do jazz e, em algum grau, da bossa nova, que aproveitavam para se posicionar no polo oposto ao que chamavam de simplismo.

Mas então vieram os Beatles, e, a partir de algum momento, aquilo não era mais apenas rock and roll. “Os músicos brasileiros ficaram um pouco zonzos vendo o crescimento de fãs do rock, jovens que poderiam ser seus fãs. ‘O que seria essa onda?’, se perguntaram. E os que tiveram alguma resistência começaram a mudar de opinião a partir do álbum Revolver”, diz o pesquisador Zuza Homem de Mello, lembrando do disco de 1966. Ali, diz Zuza, acabou a inocência.

A onda que se ergueu no mar de João Gilberto com Chega de Saudade, em 1959, bateria bem mais frágil nas paredes do Carnegie Hall, em Nova York, em 21 de novembro de 1962. O concerto que deveria mostrar o poderio do pensamento musical brasileiro, com apresentações de Tom Jobim, João, Luiz Bonfá, Oscar Castro Neves, Sérgio Mendes, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo e vários outros, se tornou um fiasco percebido pela imprensa norte-americana, com erros técnicos e desorganização.

A noite ficou conhecida como a despedida da primeira geração da bossa nova, ou a noite da diáspora, já que vários desses artistas resolveram ficar nos Estados Unidos depois da apresentação. Seria só coincidência o fato de Please Please Me ter sido lançado havia sete meses e 29 dias antes do show? “Uma coisa positiva que possivelmente teria rolado em um mundo sem os Beatles seria a ‘bossanovamania’, com Tom Jobim, João Gilberto e seus amigos estourando no programa The Ed Sullivan Show. A ‘Brazilian Invasion’ teria levado nossos gênios para todo mundo e no mundo inteiro os jovens fariam cursinho para aprender português”, diz o pesquisador e produtor Marcelo Fróes. “Uma coisa ruim sem os Beatles talvez seria Liverpool ter continuado um lugar feio, miserável e sem graça”, completa.

Uma revolução mais lenta, mais pulverizada e sem o mesmo impacto. É assim que o jornalista e escritor Bento Araújo, autor da série de livros Lindo Sonho Delirante, imagina um mundo sem os quatro de Liverpool. Ele acredita em um protagonismo maior de outras frentes, como a literatura e as artes plásticas, ocupando o vácuo na transformação cultural dos anos 1960. O cantor Paulo Ricardo, ex-jornalista musical, vai na mesma linha. “Os Beatles foram um produto do seu tempo: se eles não tivessem existido, certamente outros garotos teriam feito o que eles fizeram. O mundo vivia um renascimento, alguém teria produzido uma trilha sonora, não ficaríamos sem música, isso eu garanto.”

A Jovem Guarda, diz Bento, também seria outra. “Algo baseado em uma mistura de som de garagem das bandas norte-americanas com a música psicodélica.” Curioso, ele lembra, notar que a outra denominação do movimento, o iê-iê-iê, vem do “yeah yeah yeah” de She Loves You, a única música a batizar uma cena.

Sem Beatles não haveria a Tropicália. Foi depois de ouvir o álbum Sgt Peppers Lonely Hearts Club, em 1967, que Gilberto Gil desenhou as bases com Caetano e Tom Zé usando as mesmas premissas de quebra de barreiras pensadas por Lennon e McCartney. Instrumentos sinfônicos com guitarras. “O impacto foi muito além do esperado. O grau de inovação, invenção e ousadia embriagou todos”, disse Gilberto Gil, em 2007. O produtor Nelson Motta, que conseguiu fazer Elis Regina ouvir um álbum dos Beatles pela primeira vez, vai além: “O problema é que sem as músicas dos Beatles, milhares e milhões de músicas, muitas delas que se tornariam clássicos do pop, nem sequer teriam sido feitas.” Ele se lembra das barreiras na MPB dos anos 60, que demorou para aceitar a proposta do grupo. “Aquilo, para Elis Regina, representou uma virada na carreira. De dona da MPB e inimiga do rock, ela gravou Golden Slumbers e em inglês! Dois tabus da época para a ‘autêntica’ MPB ultranacionalista de 1970.”

Sem Beatles, haveria outros reis? “O legado musical seria regido pelos Beach Boys na América e pelos Rolling Stones na Inglaterra”, diz o cantor e pesquisador de rock Deni Martins. A força da primeira poderia ter sido ainda maior sem a sombra dos ingleses. George Martin chegou a dizer que, sem Pet Sounds, de 1966, não haveria Sgt Peppers. E então, é bom lembrar que sem Elvis, sem Buddy Holly e sem Beach Boys, os Beatles não teriam mesmo existido. “Seria tipo Amazônia, perderíamos um pulmão e tanto”, diz Zélia Duncan. “Sem Yesterday, seria mais pobre o amanhã, portanto o hoje.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Julio Maria, colaborou Adriana Del Ré
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