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Na estrada, com os caminhoneiros

23/05/2019

O sol ainda nem despontou no horizonte e Nirley de Freitas já está de pé para mais uma viagem. Escova os dentes, lava o rosto, prepara um chimarrão e verifica a calibragem dos 34 pneus do Volvo FH 540. Pelo rádio, convoca os amigos para uma oração. Reza um Pai Nosso e uma Ave Maria, pede proteção a Deus e acelera rumo ao Sul do País. Com quase 50 toneladas de soja, divididas em duas caçambas, o caminhoneiro percorrerá 2.350 quilômetros de Sinop (MT) até o destino final em Araucária (PR). No trajeto, vai atravessar os Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná.

Durante quatro dias, a reportagem do Estado acompanhou a rotina de Freitas a bordo de seu caminhão Robocop, de nove eixos, 2018. A viagem começou em Sinop, às 5h30 do dia 16 de maio e terminou às 21h40 de domingo, dia 19 – mas ele só descarregou na última terça-feira. Por mais de duas semanas, o Estado tentou um motorista para fazer a viagem. Mas, por causa da falta de fretes decorrente da crise econômica, só conseguiu na terceira tentativa, quando Freitas pegou uma carga para o Sul.

Paranaense, da cidade de Ivaiporã, ele virou caminhoneiro há dez anos, depois de trabalhar com o pai na agricultura. Chegou a fazer curso de genética e inseminação artificial de animais, mas abandonou tudo para viver na boleia de um caminhão. Só nos últimos 12 meses, percorreu mais de 100 mil km pelo Brasil – mais do que duas voltas ao redor da Terra. Nos últimos tempos, porém, anda desiludido com a profissão e já faz planos para mudar de vida. “Mas ser caminhoneiro é como um vício. Apesar dos problemas, é difícil largar.”

Estradas. As queixas de Freitas foram aparecendo durante toda a viagem. No primeiro dia, foram quase 700 km rodados até Rondonópolis, pela BR-163 – estrada quase toda de pista simples, com poucas áreas de ultrapassagem. Meca do agronegócio brasileiro, por onde circulam milhões de reais todos os dias, a região tem rodovias sob concessão privada e com pedágios elevados. Mas isso não se reflete na qualidade das estradas, com asfalto ruim e remendos no pavimento.

O desnível entre a pista e o acostamento é um perigo constante para um caminhão que pesa no total 74 toneladas (carga mais veículo) e custa cerca de R$ 650 mil. Qualquer descuido, o veículo pode tombar. Por causa dos solavancos, os pneus sempre são danificados – dessa vez, Freitas até achou que saiu no lucro, com um pneu furado e outro com vazamento no bico.

Pela falta de segurança, os motoristas procuram viajar em comboios. Seguiram com Freitas, Clemilton Bueno Terra, conhecido como Cipó; Gustavo Aparecido de Oliveira, o Paraguai; e Leonildo Amarildo Soares, apelidado pelos demais de Gordinho. Apesar de terem se conhecido um dia antes do início da viagem, eles pareciam amigos de décadas. “A parte mais difícil é a solidão. Quando tem mais gente, fica mais fácil”, diz Freitas.

Divertidos, gastam o tempo na boleia fazendo piadas e tirando “sarro” um do outro pelo rádio. Quando o ânimo começa a baixar ou o sono chega após o almoço, é hora de sacar o aparelho e começar a “prosear”. Pelo rádio, eles fazem até disputa da melhor playlist com músicas de caminhoneiros – quase sempre de canções sertanejas.

Estacionamento. Na hora de dormir, surge um novo problema. Com a quantidade de motoristas pela estrada, os postos com estacionamento ficam lotados. E, no caso de Freitas, seu caminhão não pode trafegar à noite. Em alguns locais, os postos chegam a cobrar R$ 45 pela pernoite e R$ 9 pelo banho. Mas se o motorista abastecer o caminhão no estabelecimento, os serviços são de graça.

Depois de um dia inteiro na estrada, ainda sobra disposição para preparar o jantar no próprio caminhão. O cardápio varia de macarrão a um cozido de arroz, batata e linguiça, feito na panela de pressão. Sentados em cadeiras de praia ou banquinho de plástico, eles comem, tomam cerveja e colocam as conversas dos grupos de WhatsApp em dia. Também aproveitam para fazer selfies para enviar para as famílias – eles chegam a ficar um mês sem ver os familiares. Do comboio que seguiu com Freitas, todos estavam há mais de 20 dias fora de casa.

Diesel e pedágio. Animados, eles mudam de humor a cada parada no posto para abastecer ou a cada pedágio pago. De Sinop a Araucária, Freitas gastou R$ 5,25 mil de combustível – quase 50% do valor do frete, de cerca de R$ 11 mil. Por causa da variação de preços, eles abastecem o caminhão a conta-gotas. Quanto mais ao Sul, menor o valor do combustível. No Centro-Oeste, eles chegaram a pagar R$ 4,19 o litro do diesel S-10, enquanto a média nacional está em R$ 3,79. No caso do pedágio, a lógica é inversa: quanto mais ao Sul, mais caro o valor cobrado dos caminhoneiros. Em todo o percurso, Freitas passou por 23 pedágios e desembolsou mais de R$ 1,3 mil. O maior deles, no Paraná, custou R$ 88,20.

Depois dessa maratona, Freitas não vai descansar. Desde ontem, ele já está de volta às estradas. Só que desta vez no sentido contrário. Ele carregou adubo em Paranaguá e vai levar até Maracaju, em Mato Grosso do Sul.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Renée Pereira e Daniel Teixeira
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