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Na Rússia de Putin, 100 anos da Revolução ficam em 2º plano

05/11/2017
Na Rússia de Putin, 100 anos da Revolução ficam em 2º plano
Manifestação pelo aniversário de Lênin, líder da Revolução Russa (foto: EPA)

Manifestação pelo aniversário de Lênin, líder da Revolução Russa (foto: EPA)

Silêncio ensurdecedor. Até mesmo surreal. Enquanto o mundo, sobretudo o Ocidente, relembra o centenário do Outubro Vermelho, o país onde tudo ocorreu, que entrou na Revolução como Rússia imperial para sair como União Soviética, espera a chegada de 7 de novembro quase com fastio.

“Não há nada para festejar”, cortou o porta-voz do Kremlin ao comentar a ausência de um programa de comemorações oficiais. Algo que diz muito sobre a Rússia atual e seus medos. A cadeia de eventos que levou a Rússia czarista a experimentar o socialismo imaginado por Marx e Engels é longa e se cristaliza naquele 25 de outubro de 1917 – no calendário juliano então em vigor -, quando, em uma sessão extraordinária do Soviete de Petrogrado, Leon Trótski, às 14h30, proclamou a “dissolução” do governo provisório presidido por Kerensky e, pouco depois, Lênin decretou a “revolução” dos proletários e camponeses.

Não significava nada (não ainda), mas de repente virou História com “H” maiúsculo e, por volta de 21h40, o cruzador Aurora abriu fogo contra o Palácio de Inverno. Ao longo da madrugada, a tomada do poder seria concluída. Moscou, graças à revolução, voltou a ser capital e hoje, 100 anos depois, São Petersburgo, onde nasceu o presidente Vladimir Putin, é considerada a cidade da cultura, refinada por natureza, mas afastada dos jogos políticos.

O palco perfeito para tentar uma síntese, ainda que frágil, e oferecer ao mundo que celebra a Revolução um ponto de vista russo. Quem se aproximou disso foi, ironicamente, o italiano Valerio Festi, proprietário do estúdio homônimo que, há alguns anos, encanta o centro de Moscou com iluminações de natal de inspiração barroca.

“A ideia”, conta ele, “era abordar a Revolução partindo da abolição da servidão da gleba, em 1861, descrevendo as grandes transformações sociais do país, com um grande espetáculo de massa”. O projeto encontrou o apoio do governador de São Petersburgo e caminhava rapidamente, mas depois, quem tinha de assinar os papéis desapareceu, e “não se fez mais nada”.

Até mesmo aquele recorte, que de propósito havia deixado de lado as implicações políticas do Outubro Vermelho, foi julgado muito espinhoso. Como notou o historiador Ivan Kurilla, se em Paris, pelos 100 anos da Revolução Francesa, surgiu a Torre Eiffel, e se em Nova York, pelo centenário da revolta contra a Grã-Bretanha, apareceu a Estátua da Liberdade (ainda que com um pouco de atraso), o máximo que Moscou pode esperar é o memorial dedicado às vítimas da repressão stalinista inaugurado por Putin no Dia da Memória.

Nem todos, naturalmente, olham para o outro lado. Os comunistas, guiados pelo eterno líder Guennadi Ziuganov, se preparam para uma semana de festejos; a Coreia do Norte enviou uma delegação para participar do evento; e o museu Hermitage, de São Petersburgo, inaugurou em 25 de outubro uma grande mostra que desmascara os mitos da Revolução e percorre suas etapas cruciais, contando os fatos como eles realmente ocorreram.

Mas a verdade é que o centenário cai a poucos meses do início da campanha eleitoral para a Presidência, e o Kremlin vigia para que a narrativa principal do “putinismo” – estabilidade e reconstrução do Estado-Nação – não seja perturbada de nenhuma maneira. O “czar”, na realidade, nunca escondeu sua aversão pelo caos provocado pela Revolução e já expressou o desejo de que o aniversário possa ser interpretado pela sociedade russa “como um símbolo para superar as divisões”.

Porém ele não deixou de recordar, em um discurso recente, que foi a Revolução, com suas reformas radicais, a forçar o capitalismo a mostrar sua melhor face. Por outro lado, a História, aquela com H maiúsculo, é pérfida, e o centésimo aniversário ocorre justamente quando as ruas se enchem de jovens manifestantes fascinados pela “boa novela” de Alexei Navalny, o blogueiro anticorrupção que vive em entra e sai das cadeias russas.

O contexto é profundamente diverso, mas a única constante, na Rússia de ontem e de hoje, é que os eventos nessa latitude podem precipitar de modo rodopiante e imprevisível. Melhor passar da grande Revolução para a grande Remoção. (ANSA)