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Apagar o passado, olhar o futuro’: sonho de Hitler, ‘Colosso de Prora’ vira hotel de luxo

01/11/2015
Apagar o passado, olhar o futuro’: sonho de Hitler, ‘Colosso de Prora’ vira hotel de luxo

simulacao1São quatro horas e meia no trem entre Berlim e a praia de Prora, em Rügen, ilha turística debruçada sobre o Mar Báltico, no norte da Alemanha. Os 308 quilômetros são derrotados lentamente, salpicados pelas cidades hanseáticas da Meckelmburgo-Pomerânia e suas catedrais pontiagudas. Primeiro Rostock. Depois, Stralsund. Somente então, a solidão de Prora.

A chuva fina e as primeiras temperaturas baixas do outono dizem que a alta temporada chegou ao fim. Sou o único a desembarcar de um trem praticamente vazio. O vento cortante logo desfaz qualquer ideia de paraíso, mas em volta há o silêncio, o ar puro, as árvores altas de folhas amareladas, as trilhas bucólicas e as ciclovias confortáveis.

Assim que passam os primeiros casais de bicicleta, cabelos brancos sob os capacetes, roupas impermeáveis combinando cores, a quietude ganha sabor de retiro. Rügen tem 926 km² para explorar nos pedais. É mais que o dobro da Ilha de Santa Catarina. Prora, parada obrigatória das bikes, tem 4,5 quilômetros de praia de areia branca. São 400 metros a mais que Copacabana.

À parte a extensão, porém, o recanto alemão nada tem a ver com o cartão-postal carioca. Basta enfiar os pés na areia gelada e olhar ao redor. Em vez de uma movimentada Avenida Atlântica, a orla é ocupada pelos restos mortais de um projeto faraônico de Clemens Klotz, escolhido como vencedor de um concurso por Adolf Hitler e apelidado sugestivamente de “Koloss von Prora” ou “Colosso de Prora”.

Grand Prix de 1937 na Exposição Internacional de Artes e Técnicas de Paris, construído entre 1936 e 1939, o colosso era uma espécie de colônia de férias nazista, dotada de oito blocos com 100 mil m² de edifícios beges com cinco andares cada. Até hoje, com pedaços em pé, outros deitados, outros em obra, outros reformados, o cenário parece um quebra-cabeças político do século 20, mas permanece como uma das principais heranças arquitetônicas do nazismo.

Os números, naturalmente, são fabulosos. O “Colosso de Prora”, deixado de lado por Hitler após o início da Segunda Guerra Mundial, ofertaria milhares de quartos para 20 mil alemães conviverem no balneário. Jovens deitariam nas areias brancas sob a filosofia da Kraft durch Freude (KdF) ou, em tradução livre, Força pela Alegria, uma sub-organização da Frente Alemã do Trabalho, entidade responsável por gerir o tempo livre e as férias dos cidadãos sob os auspícios do Führer.

Em outras palavras, a proposta oficial era usar o KdF-Seebad Prora, nome oficial do trambolho, como centro de treinamento de homens e mulheres para a guerra e, futuramente, para uma Alemanha nacional-socialista pós-guerra. As férias seriam controladas e com propósito: cidadãos felizes e fortes para destruir o inimigo.

Cursos preparatórios foram, de fato, ministrados em Prora. As fotos revelam grupos de homens e mulheres sorridentes, servindo a suástica com afinco e, acima de tudo, ignorantes que 70 anos depois, naquele mesmo lugar, em uma cambalhota da história, a arquitetura nazista seria transformada em um hotel de luxo pelas mãos de investidores – entre eles Ulrich Busch, filho de Ernst Busch, um dos mais notórios atores comunistas alemães do século 20.

Recauchutado
Da varanda de um dos lofts do resort Prora Solitaire, Ulrich Busch lembra, com toques de nostalgia, de sua estadia no Copacabana Palace, de cruzar ao volante a Ponte Rio-Niterói e de “muita diversão” – o que rompe, por alguns segundos, a seriedade de seu olhar, tão parecido com o do pai famoso.

O cantor Ernst Busch, sobrevivente de um campo de concentração na França e morto em 1980, aos 80 anos, interpretava com o cenho decidido as canções políticas de Kurt Tucholsky e Bertolt Brecht, entre outros – uma delas, Das Einheitsfrontlied (Canção da Frente Unida, em tradução livre), está entre as mais conhecidas do movimento trabalhador alemão. Comunista convicto, dá hoje nome à Academia Ernst Busch de Artes Dramáticas, a principal escola de teatro da Alemanha, em Berlim.

Sobre o pai celebrado até hoje, o empreiteiro Ulrich Busch é apenas lacônico: “Uma grande figura. Na infância foi difícil. Hoje, até é bom pensar que sou filho dele.”

Detalhista, Busch gosta mesmo é de apresentar as variações de plantas dos apartamentos, destilar números, falar com propriedade sobre a resistência da estrutura original, da fundação às esquadrias, e das discussões sobre a Denkmalschutz (lei alemã de preservação de patrimônio), que duraram anos até que um acordo entre governo e investidores permitiu alterações na fachada.

Por dentro e por fora, a verdade é que pouco resta do visual nazista nos Blocos 1 e 2, comprados por ele em 2006. O bege foi substituído por branco, as paredes dos quartos minúsculos caíram, as janelas simples receberam amplas varandas de vidro temperado, com vista privilegiada para o Mar Báltico. A pequena cidade de Binz, a leste, pontua a paisagem verde, branca e azul.

Nos blocos reformados, as memórias de 1939 descansam camufladas no teto da cobertura, em que as vigas de concreto permanecem cruas, e em alguns pilares internos, que lembram as colunas do Estádio Olímpico de Berlim, construído pelos nazistas para os Jogos de 1936.

Por um momento, parece surreal que esses elementos se misturem a propostas de decoração e tecnologia como “cozinha americana” e “piso com aquecimento controlado”, mas o volume de vendas, além de iluminar o rosto de Busch, afasta questionamentos sobre a viabilidade do negócio.

Com entrega programada para o fim do ano, 90% dos apartamentos de férias e 75% dos apartamentos residenciais foram vendidos. O preço estimado da diária, na versão de 45m², é de 100 euros, cerca de R$ 450. Para arrematar um, é preciso desembolsar entre 4 mil e 10 mil euros (entre R$ 18 mil e R$ 45 mil) por m². O valor depende do bloco e, é claro, da vista para o mar.

“Nossos compradores são 99% alemães. Um deles era soldado na Alemanha Oriental e morou aqui. Foi um dos primeiros a se mudar para cá. Veja só como é a vida”, sorri Busch.